“Todos reclamam reformas, mas ninguém se quer reformar.”
Mariano José Pereira da Fonseca, o Marquês de Maricá
Em 27 de janeiro de 2013, um músico acendeu um sinalizador dentro da
boate Kiss, em Santa Maria, durante uma sua apresentação. Faíscas do
artefato atearam fogo ao inadequado revestimento de espuma do teto,
liberando cianeto, substância venenosa que vitimou 242 pessoas e feriu
116. Passados alguns dias, o Ministério Público apontou falhas nas
fiscalizações do Corpo de Bombeiros e nos procedimentos dos donos do
estabelecimento e indicou responsabilidade também do poder público pelo
acontecido.
Faz um ano, portanto, dezenas de jovens pereceram ante a imprevidência de empresários (que, segundo consta, almejam antes o lucro ao bem-estar de seus clientes), ante a permissividade de fiscais e ante a incompetência de autoridades. Mas, e a temeridade dos próprios jovens? E a temeridade de todos nós, que optamos por freqüentar lugares insalubres e precários?
Desde as primeiras horas após a tragédia da boate Kiss, temos gritado e a imprensa tem reverberado: “Onde estão as autoridades!?”, “Exigimos providências do Poder Público!”, “O Estado tem de agir!”. Mas, e nós, os indivíduos? Apenas aqueles entes abstratos devem ser cobrados?
Não estamos falando de uma rua cujo asfalto se abriu, engolindo e matando desafortunados que por ela passavam, ou de um hospital superlotado, incapaz de atender pacientes à beira da morte. Falamos de um estabelecimento privado, de entretenimento, tipo de local ao qual vamos somente se quisermos. É inevitável que freqüentemos os dois primeiros exemplos; a rua e o hospital são locais públicos, mantidos pelos contribuintes, através de pesadíssima carga tributária, de modo que é legítimo cobrarmos bons serviços, em primeiro lugar, daqueles que deveriam gerir eficientemente nossos tributos. A uma boate, contudo, vamos tão somente se tivermos vontade, se decidirmos por isso. Entretanto, todos nós somos contumazes em fazer péssimas opções e acabamos decidindo, de livre consciência, por entrar em boates, restaurantes, centros comerciais e outros locais de lazer sem condições de nos receber. A administração pública não consegue – e é bom que seja assim – dar conta de tudo. Contudo, há cada vez mais cidadãos dispostos a entregar suas vidas em mãos estatais.
O Estado é uma entidade de fácil definição jurídica, mas que surge como um ente abstrato, intocável e indelineável, o qual todos se sentem confortáveis para criticar, evitando o constrangimento de citar nomes e - Deus nos livre! -, angariar antipatias. Lembremo-nos das manifestações de junho de 2013: os cartazes e as palavras de ordem eram contra a fabular corrupção, jamais contra Lula, Zé Dirceu, José Genoíno e demais corruptos e corruptores. Da mesma forma, na questão da boate Kiss, é muito mais fácil criticar corporações, instituições e outros seres extraordinários do que dizer o óbvio: o ponto de partida da tragédia foi a atitude inconseqüente de um indivíduo. Dói, eu sei; dói para quem diz e para quem ouve; não causa regozijo nem alivia o luto; mas é a verdade.
A cada tragédia, a cada escândalo, a cada caso de violência, agimos como se o Estado fosse negligente sozinho, como se a corrupção pairasse no ar, como uma epidemia, pronta para assolar a nós. É como se o sistema estivesse sempre lá, à espreita, esperando para puxar o gatilho da arma que ele mesmo, malvado que é, colocou na mão do bandido (essa sua pobre vítima, que só não sofre mais porque há ONGs que defendem os direitos humanos). São, então, esses seres fabulosos – Estado, sistema, corrupção – os culpados por todos nossos infortúnios, incluindo incêndios.
Trata-se de um padrão brasileiro: a resposta a todos os problemas deve ser dada pelo Estado. Nosso povo guerreiro só fica tranqüilo em relação a algo quando uma secretaria especial, ligada a algum ministério, é criada, com a conseqüente nomeação de dezenas de pessoas que, até então, jamais lidaram com tal questão. Mas pode ser também uma autarquia, ou mesmo uma empresa pública – tanto melhor, pois, assim, logo um concurso público será aplicado, a fim de prover os cargos na Embrarretal (Empresa Brasileira Para Resolver Tal Assunto), ou Talassuntobrás. Em geral, nossa grita por providências estatais nada resolve – apenas possibilita a celebrada multiplicação das tetas.
Após a tragédia de Santa Maria e os questionamentos que decorreram em torno do alvará e do rigor fiscalizatório que pode ter faltado na boate incendiada, o Brasil está perplexo com a negligência do Estado, que permite o funcionamento de boates como a que pegou fogo. Contudo, não há grandes demonstrações de perplexidade com relação à ação do incendiário culposo (no sentido jurídico), muito menos com a submissão voluntária de tanta gente a ambientes periculosos. É tão difícil perceber que ninguém é obrigado a submeter-se ao risco a que se submete em locais como o da tragédia?
Não estou com pena do Estado, que, pobrezinho, já tem tanto para fazer e tanto faz por nós. O fato é que esse tipo de ataque ao Estado é um tiro no pé. Como a Hidra de Lerna – figura da mitologia grega que, a cada cabeça que se lhe cortasse, duas nasceriam no lugar –, quanto mais se cobra do poder público, mais ele se enche de supostas razões para inchar, arbitrar, tributar e controlar.
Sobre o que ocorreu na boate Kiss, considerando o que se tem de notícia, o poder público tem, sim, sua parcela de culpa. Tão dedicado a regular tudo, a dizer como devemos educar nossos filhos e como podemos (não) nos defender, a limitar o que podemos e o que não podemos dizer, a definir, quase que discricionariamente, cada ato de cada cidadão, o poder público deveria, facilmente, identificar estabelecimentos que oferecem riscos a seus freqüentadores. Também, considerando o que se sabe até agora, os donos da boate hão de ter sua parcela de culpa. Uma casa noturna deve apresentar condições decentes para receber seus clientes e para que estes saiam rapidamente em caso de emergência.
Contudo, considerando o que se sabe até agora, a responsabilidade primeira, de fato, não é de outro senão de quem fez uso indevido de efeitos pirotécnicos. Ademais, se a idéia é dividir essa culpa (do que não discordo), os primeiros a receber sua parcela são aqueles que presenciaram, passivamente, na ocasião trágica e em todas as supostas ocasiões anteriores, a imprudente pirotecnia. Também dividimos com o incendiário involuntário tal responsabilidade todos nós, representados por aqueles jovens que escolheram freqüentar um ambiente sem condições de escoamento de emergência e que escolheram assistir àquele arriscado espetáculo pirotécnico, fugindo dele só quando não havia mais tempo. Atitudes absolutamente temerárias como essas não podem ser previstas o tempo todo, nem por um Estado completamente inchado e atuante, nem pela casa noturna mais segura e equipada.
Exigir mais providências das improvidentes autoridades, antes que nós mesmos assumamos nossas responsabilidades e coloquemos nossas vidas a salvo enquanto podemos, é tão perigoso quanto acender um artefato pirotécnico em um ambiente fechado e sem plano de combate a incêndios.
O que queremos exigindo “leis mais severas”, afinal? A julgar pelas reações pós-tragédia, que praticamente excluíram do debate as ações individuais, queremos um agente do Estado em cada esquina, em cada quintal, tomando conta de cada um de nós. “Aonde você vai, camarada?”, perguntará o Técnico em Orientação da Conduta do Cidadão. E fará recomendações que salvarão vidas: “Não se esqueça de verificar se o local ao qual o senhor está se dirigindo é seguro. Ah, e leve um casaquinho.”
Faz um ano, portanto, dezenas de jovens pereceram ante a imprevidência de empresários (que, segundo consta, almejam antes o lucro ao bem-estar de seus clientes), ante a permissividade de fiscais e ante a incompetência de autoridades. Mas, e a temeridade dos próprios jovens? E a temeridade de todos nós, que optamos por freqüentar lugares insalubres e precários?
Desde as primeiras horas após a tragédia da boate Kiss, temos gritado e a imprensa tem reverberado: “Onde estão as autoridades!?”, “Exigimos providências do Poder Público!”, “O Estado tem de agir!”. Mas, e nós, os indivíduos? Apenas aqueles entes abstratos devem ser cobrados?
Não estamos falando de uma rua cujo asfalto se abriu, engolindo e matando desafortunados que por ela passavam, ou de um hospital superlotado, incapaz de atender pacientes à beira da morte. Falamos de um estabelecimento privado, de entretenimento, tipo de local ao qual vamos somente se quisermos. É inevitável que freqüentemos os dois primeiros exemplos; a rua e o hospital são locais públicos, mantidos pelos contribuintes, através de pesadíssima carga tributária, de modo que é legítimo cobrarmos bons serviços, em primeiro lugar, daqueles que deveriam gerir eficientemente nossos tributos. A uma boate, contudo, vamos tão somente se tivermos vontade, se decidirmos por isso. Entretanto, todos nós somos contumazes em fazer péssimas opções e acabamos decidindo, de livre consciência, por entrar em boates, restaurantes, centros comerciais e outros locais de lazer sem condições de nos receber. A administração pública não consegue – e é bom que seja assim – dar conta de tudo. Contudo, há cada vez mais cidadãos dispostos a entregar suas vidas em mãos estatais.
O Estado é uma entidade de fácil definição jurídica, mas que surge como um ente abstrato, intocável e indelineável, o qual todos se sentem confortáveis para criticar, evitando o constrangimento de citar nomes e - Deus nos livre! -, angariar antipatias. Lembremo-nos das manifestações de junho de 2013: os cartazes e as palavras de ordem eram contra a fabular corrupção, jamais contra Lula, Zé Dirceu, José Genoíno e demais corruptos e corruptores. Da mesma forma, na questão da boate Kiss, é muito mais fácil criticar corporações, instituições e outros seres extraordinários do que dizer o óbvio: o ponto de partida da tragédia foi a atitude inconseqüente de um indivíduo. Dói, eu sei; dói para quem diz e para quem ouve; não causa regozijo nem alivia o luto; mas é a verdade.
A cada tragédia, a cada escândalo, a cada caso de violência, agimos como se o Estado fosse negligente sozinho, como se a corrupção pairasse no ar, como uma epidemia, pronta para assolar a nós. É como se o sistema estivesse sempre lá, à espreita, esperando para puxar o gatilho da arma que ele mesmo, malvado que é, colocou na mão do bandido (essa sua pobre vítima, que só não sofre mais porque há ONGs que defendem os direitos humanos). São, então, esses seres fabulosos – Estado, sistema, corrupção – os culpados por todos nossos infortúnios, incluindo incêndios.
Trata-se de um padrão brasileiro: a resposta a todos os problemas deve ser dada pelo Estado. Nosso povo guerreiro só fica tranqüilo em relação a algo quando uma secretaria especial, ligada a algum ministério, é criada, com a conseqüente nomeação de dezenas de pessoas que, até então, jamais lidaram com tal questão. Mas pode ser também uma autarquia, ou mesmo uma empresa pública – tanto melhor, pois, assim, logo um concurso público será aplicado, a fim de prover os cargos na Embrarretal (Empresa Brasileira Para Resolver Tal Assunto), ou Talassuntobrás. Em geral, nossa grita por providências estatais nada resolve – apenas possibilita a celebrada multiplicação das tetas.
Após a tragédia de Santa Maria e os questionamentos que decorreram em torno do alvará e do rigor fiscalizatório que pode ter faltado na boate incendiada, o Brasil está perplexo com a negligência do Estado, que permite o funcionamento de boates como a que pegou fogo. Contudo, não há grandes demonstrações de perplexidade com relação à ação do incendiário culposo (no sentido jurídico), muito menos com a submissão voluntária de tanta gente a ambientes periculosos. É tão difícil perceber que ninguém é obrigado a submeter-se ao risco a que se submete em locais como o da tragédia?
Não estou com pena do Estado, que, pobrezinho, já tem tanto para fazer e tanto faz por nós. O fato é que esse tipo de ataque ao Estado é um tiro no pé. Como a Hidra de Lerna – figura da mitologia grega que, a cada cabeça que se lhe cortasse, duas nasceriam no lugar –, quanto mais se cobra do poder público, mais ele se enche de supostas razões para inchar, arbitrar, tributar e controlar.
Sobre o que ocorreu na boate Kiss, considerando o que se tem de notícia, o poder público tem, sim, sua parcela de culpa. Tão dedicado a regular tudo, a dizer como devemos educar nossos filhos e como podemos (não) nos defender, a limitar o que podemos e o que não podemos dizer, a definir, quase que discricionariamente, cada ato de cada cidadão, o poder público deveria, facilmente, identificar estabelecimentos que oferecem riscos a seus freqüentadores. Também, considerando o que se sabe até agora, os donos da boate hão de ter sua parcela de culpa. Uma casa noturna deve apresentar condições decentes para receber seus clientes e para que estes saiam rapidamente em caso de emergência.
Contudo, considerando o que se sabe até agora, a responsabilidade primeira, de fato, não é de outro senão de quem fez uso indevido de efeitos pirotécnicos. Ademais, se a idéia é dividir essa culpa (do que não discordo), os primeiros a receber sua parcela são aqueles que presenciaram, passivamente, na ocasião trágica e em todas as supostas ocasiões anteriores, a imprudente pirotecnia. Também dividimos com o incendiário involuntário tal responsabilidade todos nós, representados por aqueles jovens que escolheram freqüentar um ambiente sem condições de escoamento de emergência e que escolheram assistir àquele arriscado espetáculo pirotécnico, fugindo dele só quando não havia mais tempo. Atitudes absolutamente temerárias como essas não podem ser previstas o tempo todo, nem por um Estado completamente inchado e atuante, nem pela casa noturna mais segura e equipada.
Exigir mais providências das improvidentes autoridades, antes que nós mesmos assumamos nossas responsabilidades e coloquemos nossas vidas a salvo enquanto podemos, é tão perigoso quanto acender um artefato pirotécnico em um ambiente fechado e sem plano de combate a incêndios.
O que queremos exigindo “leis mais severas”, afinal? A julgar pelas reações pós-tragédia, que praticamente excluíram do debate as ações individuais, queremos um agente do Estado em cada esquina, em cada quintal, tomando conta de cada um de nós. “Aonde você vai, camarada?”, perguntará o Técnico em Orientação da Conduta do Cidadão. E fará recomendações que salvarão vidas: “Não se esqueça de verificar se o local ao qual o senhor está se dirigindo é seguro. Ah, e leve um casaquinho.”
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