quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Legado da máfia contamina o solo do sul da Itália
Jim Yardley - NYT

Nadia Shira Cohen/The New York Times
Maria Formisano, que foi diagnosticada com câncer de mama, em sua casa em Marigliano, na Itália 
Maria Formisano, que foi diagnosticada com câncer de mama, em sua casa em Marigliano, na Itália
Este mês, o governo italiano chegou ao epicentro dos domínios da Camorra usando uma retroescavadeira. Policiais com botas pretas lustrosas posaram para as câmeras de TV enquanto a retroescavadeira rasgava a terra sob um matagal em busca de barris de lixo tóxico ou de algum outro sarcófago de detritos industriais ilegais.
Dois informantes da máfia que estão presos tinham identificado o terreno como um dos locais secretos onde a Camorra havia enterrado resíduos tóxicos, perto de uma região ao norte de Nápoles conhecida como o Triângulo da Morte devido ao surgimento de vários casos de câncer em série. Um grupo de ambientalistas estima que 10 milhões de toneladas de lixo tóxico foram ilegalmente enterradas nesse local desde o início da década de 1990, um negócio que gerou bilhões de dólares para a máfia enquanto substâncias tóxicas contaminavam o solo e o lençol freático da região.
Apesar de o descarte de substâncias tóxicas ter sido amplamente documentado, a crise do lixo só tem piorado, uma vez que outro problema semelhante, o da queima ilegal de resíduos tóxicos, fez a região ganhar outro apelido: o de Terra das Fogueiras. Com as novas revelações alimentando a indignação pública, a dúvida agora é saber se o governo italiano vai confrontar a Camorra e limpar essa bagunça --e se essa bagunça pode realmente ser limpa.
"Aqui, o meio ambiente está envenenado", disse o doutor Alfredo Mazza, cardiologista que documentou um aumento alarmante nos casos de câncer na região em um estudo de 2004 publicado pela revista médica britânica The Lancet. "É impossível limpar tudo. A área é grande demais." E acrescentou: "Nós estamos vivendo em cima de uma bomba".
O lixo é um problema perene na Itália à medida que os aterros ficam sem espaço, desencadeando crises periódicas em cidades como Roma e Nápoles. Mas a terra da Camorra, que se estende do mar Tirreno e vai até o sopé dos Apeninos, representa um quadro particularmente vivo de beleza arruinada.
Lá, o lixo se espalha ao longo de estradas, é atirado sob viadutos ou jogado sobre canais de irrigação. Ratos procuram comida em meio a placas de amianto descartadas, telas de computadores quebrados e latas de tinta vazias. Frequentemente, se veem colunas de fumaça preta subindo para o céu, além de montes de lixo ilegalmente queimado nas encostas distantes ou em campos abandonados.
Toda essa paisagem é resultado de décadas de negociações secretas entre industriais italianos e estrangeiros --que tentavam evitar os altos custos do descarte legal de resíduos perigosos-- e a Camorra, uma das três principais organizações mafiosas da Itália, que detectou o potencial de lucrar muito com o descarte ilegal desse lixo.
Ao enterrar o lixo em seu quintal, perto de Nápoles e da região circundante da Campânia, onde a Camorra nasceu, a máfia garantiu uma medida de proteção e silêncio. Os chefões da organização muitas vezes exercem uma poderosa influência sobre a economia e os políticos locais, especialmente em pequenas cidades como Casal di Principe.
"A máfia ganhou dinheiro com o lixo", disse Ciro Tufano, 44, contador que passou duas décadas pressionando as autoridades para que um lixão de resíduos tóxicos localizado perto de sua casa fosse limpo. "Os políticos devem ter conhecimento sobre isso, mas eles não se importam. Ninguém estava seguindo esse rastro de lixo."
Mas o público despertou para o tema nos últimos meses, depois da divulgação de uma série informações e da realização de vários protestos, que levaram milhares de pessoas às ruas de Nápoles em novembro do ano passado.
Algumas revelações surgiram após a queda do sigilo do depoimento prestado em 1997 por Carmine Schiavone, ex-tesoureiro do clã Casalesi, que é uma das facções mais poderosas da Camorra. Falando sob sigilo para uma comissão parlamentar de inquérito, Schiavone havia descrito operações noturnas durante as quais mafiosos vestidos com uniformes da polícia supervisionavam o enterro de lixo tóxico proveniente de locais tão distantes quanto a Alemanha.
"Nós estamos falando de milhões de toneladas", advertiu Schiavone em seu depoimento, concedido há 17 anos, no qual ele retratava um desastre ambiental.
Em seguida, a revista italiana L' Espresso publicou uma reportagem de capa intitulada "Beba Nápoles e morra". O artigo apresentava detalhes de uma pesquisa de saúde pública realizada em 2008 pela Marinha dos Estados Unidos, que mantem uma base em Nápoles. O estudo da Marinha norte-americana, que não tinha sido divulgado na Itália, detectou uma grave contaminação da água local. O levantamento descreveu "riscos inaceitáveis" em algumas áreas e recomendou que todos os norte-americanos estacionados na região utilizassem apenas água mineral engarrafada para beber, preparar seus alimentos e escovar os dentes.
No mês passado, o primeiro-ministro Enrico Letta aprovou um decreto para aumentar as penas de prisão para o descarte ou a queima ilegal de resíduos. Neste mês, o governo italiano anunciou que um contingente de soldados italianos realizaria patrulhas contra o descarte de resíduos ilegais na região.
"Essa é uma resposta a uma situação emergencial", disse o general Sergio Costa, comandante da polícia ambiental da Itália para a região de Nápoles. "Os políticos agora têm que responder por que as pessoas estão protestando nas ruas."
A operação de escavação com a retroescavadeira, iniciada neste mês, deveria demonstrar a recente determinação do governo italiano em combater o problema. O local escolhido fica fora dos limites habituais da zona de descarte do "Triângulo da Morte", mas em uma cidade que é o quintal do clã Casalesi. Jornalistas foram convidados em meio a expectativas de que a retroescavadeira desenterraria latas de resíduos perigosos. Em 2008, um caminhão de transporte de produtos químicos foi encontrado sob um terreno localizado a poucos quilômetros de distância desse local.
Mas o que surgiu depois de horas de escavação foi apenas sujeira e ceticismo. Autoridades disseram mais tarde que as escavações continuariam por várias semanas e que grandes volumes de amianto e lama contaminada por resíduos industriais já tinham sido removidos do local. O proprietário do terreno, Stanislao Di Bello, um advogado que comprou o lote em 1990 como forma de investimento, assistiu ao trabalho usando óculos escuros --e não parecia estar impressionado. Ele disse que as autoridades já tinham escavado o terreno no início da década de 1990, mas que nada havia sido encontrado.
"Agora, 16 anos depois, o filme se repete", disse ele.
A grande questão é saber se os materiais tóxicos enterrados podem causar uma crise de saúde pública. Mais de 500 mil pessoas vivem na região, e o estudo da Lancet e outros relatórios documentaram taxas de câncer muito acima da média nacional no local. Embora nenhum estudo tenha tentado provar que há uma ligação direta entre o lixo e os casos de câncer, um relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde) produzido em parceria com instituições de saúde nacionais e locais documentou casos concentrados de câncer de fígado, rim, pâncreas e outros em áreas conhecidas como locais de descarte de resíduos tóxicos.
Na cidade vizinha de Marigliano, o reverendo Giannino Pasquale viu o câncer se espalhar rapidamente entre seus paroquianos. Ele abriu o livro verde que serve como registro de óbitos da paróquia e contou as ocorrências do ano passado: 27 mortes, 10 por câncer. Um dos voluntários mais dedicados da paróquia morreu de câncer no pâncreas em 2012, três anos após a sua mulher também ter sido vitimada pelo câncer.
"Minha sensação é de que há um acordo entre os partidos políticos e a Camorra", disse Pasquale. "Basta olhar ao redor. Pneus e pedaços de amianto são atirados nos acostamentos das estradas. Por que é que não é possível fiscalizar esta área?"
Luigi Sodano, 57, que é membro da paróquia, perdeu mais de 60 quilos durante sua batalha contra o câncer de pâncreas. A mãe de Sodano tem câncer de bexiga, seu sobrinho tem câncer de testículo e a esposa de seu sobrinho tem câncer de mama. Ele se sente tão apático devido ao tratamento de radioterapia que raramente sai de seu apartamento.
"Eu sou o anjo dele, pois estou sempre com ele", disse sua mulher, Angela Dioguardi, 53.
Costa, o comandante da polícia ambiental, disse que a Camorra parou de enterrar os resíduos na região há alguns anos e que, agora, a organização criminosa está enviando lixo tóxico ilegalmente para a Europa Oriental ou os Balcãs. A área total dos terrenos onde os resíduos estão enterrados é relativamente pequena, disse Costa, mas os riscos são significativamente mais elevados porque os lixões estão espalhados por uma região muito grande.
"Os resíduos se infiltram por todos os lugares", disse ele. "Você pode ser um agricultor que involuntariamente está irrigando suas terras com água poluída."
Os agricultores locais se queixam de que os preços de seus produtos estão caindo porque os atacadistas estão desconfiados e se recusam a comprá-los. Também há receio sobre o famoso queijo muçarela da região, embora Costa tenha dito que a produção foi rigidamente controlada e que nenhum caso de contaminação ocorreu.
Ele relembrou os primeiros dias da crise do lixo, quando ouviu uma conversa grampeada entre um chefão da Camorra e outro mafioso. "Nós estamos poluindo a nossa própria casa e a nossa própria terra", disse o mafioso. "O que é que nós vamos beber?" "Seu idiota", respondeu o chefão. "Nós vamos beber água mineral."

Tradutor: Cláudia Gonçalves

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