quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Regime sírio contabilizava suas vítimas
Christoph Reuter e Christoph Scheuermann - Der Spiegel
Ele diz que nunca testemunhou execuções, nem viu qualquer ato de tortura. Não era seu trabalho. Sua tarefa era tirar fotos dos cadáveres depois. Ele tirava quatro ou cinco fotos por corpo - do rosto e de outras partes da pessoa -, documentando a causa da morte, na medida em que é possível determinar.
Fez isso dezenas de milhares de vezes entre março de 2011 e agosto de 2013 -, quando finalmente fugiu da Síria, levando consigo cerca de 55 mil fotos em um pendrive. As imagens são de homens que passaram fome, foram estrangulados e torturados, principalmente jovens, a maioria deles nus. Alguns não tinham olhos.
O desertor, que foi citado sob o codinome "César", trabalhou para a segurança síria e diz que ele e seus colegas eram chamados cerca de 50 vezes por dia para fotografar cadáveres, cada um dos quais recebia um número para fins de documentação.
César forneceu seu testemunho e provas fotográficas a advogados e especialistas forenses de uma firma de advocacia britânica. Juntos, diz sir Desmond de Silva, ex-promotor-chefe do Tribunal Especial para Serra Leoa em Haia, as evidências do desertor mostram a "escala industrial" da matança cometida pelo regime sírio.
Além disso, as fotos oferecem uma explicação terrível para o que pode ter acontecido com as 50 mil pessoas ou mais desaparecidas na Síria - as que foram sequestradas pelo regime ao longo dos últimos dois anos. Elas não estão incluídas nos números de baixas, que seriam ao todo cerca de 130 mil na guerra civil. Mas até a última semana não havia um indício claro de onde os mortos estariam.
Os especialistas britânicos escolheram ao acaso 5.500 fotos para análise. Mais da metade delas mostrava corpos emaciados, muitos exibindo sinais de tortura. Por extrapolação, as imagens que César trouxe poderiam documentar o assassinato de cerca de 11 mil pessoas. Os três importantes advogados envolvidos acreditam que tanto o depoimento quanto a evidência fotográfica sejam autênticos.

Em um relatório, eles disseram que há "claras evidências... de tortura e morte sistemáticas de pessoas detidas". O relatório comenta que "essa evidência também pode sustentar conclusões de crimes de guerra contra o atual regime sírio".
A investigação e o relatório realizados pela firma de direito britânica foram financiados pelo Catar, o que provavelmente explica o fato de que foi divulgado ao mesmo tempo que a conferência sobre a Síria na semana passada em Genebra. O Catar apoia os rebeldes sírios, mas a posição do país não diminui o poder das imagens apresentadas.

Coerente com relatos de testemunhas

César era provavelmente uma pequena peça na máquina da morte burocrática. Mas suas fotografias poderão ser decisivas para provar potenciais crimes contra a humanidade cometidos pelo regime do presidente sírio, Bashar al Assad. Elas oferecem evidências visuais que reforçam alegações anteriores feitas por outras testemunhas.
As imagens também são coerentes - até nos detalhes - com relatos de testemunhas ainda não publicados, oferecidos ao "Spiegel' nos últimos 20 meses de reportagens. Esses relatos indicam que os grandes hospitais militares em Homs e Harasta, perto de Damasco, tornaram-se pontos de transferência para as vítimas dos militares e dos vários serviços secretos e milícias sírios.

Os mortos, segundo indicam os relatos das testemunhas, são registrados centralmente, fotografados e então levados para valas comuns em regiões desérticas na parte leste do país, que ainda são controladas pelo regime.
Quando o soldado Ahmed J., de 19 anos, natural de Alepo, se apresentou para o serviço no hospital militar de Homs, em 11 de março de 2012, viu uma grande pilha de cadáveres no pátio interno perto do necrotério. A pilha, segundo Ahmed, "tinha dezenas de metros de comprimento e duas ou três camadas de altura". Ahmed foi responsável por embalar os cadáveres em sacos de plástico branco depois que eram fotografados. Muitos deles estavam inchados e a maioria, irreconhecível. "Às vezes eram apenas partes de corpos.
Tentamos garantir que colocávamos uma cabeça, dois braços e duas pernas em cada saco", diz ele. "Outros ainda estavam vestidos e tinham telefones celulares ou dinheiro com eles. Eu não pensava no que estava fazendo e quase não dormia no início, mas depois comecei a falar durante o sono e dizia aos outros: 'Ei, me dê aquela cabeça ali! Pegue esta perna!' As mesmas coisas que eu dizia durante o dia." "Eles tinham uma boa câmera", disse ele, antes de se lembrar de mais um detalhe: "O fedor era insuportável".
Cada cadáver, disse Ahmed, era fotografado três ou quatro vezes. "Cada buraco de bala era documentado", diz ele, acrescentando que fazia parte de uma equipe de 15 que trabalhavam em dois turnos. "Um desmaiou no primeiro dia e foi espancado. Outros saqueavam os cadáveres e faziam piadas." Seu superior era um médico militar, disse Ahmed. "Ele saía a cada meia hora, dizendo que tinha dor de cabeça. Disse que nunca tinha visto tal coisa em seus 30 anos de profissão."
Todos os dias chegavam várias remessas, "a maioria de bairros e subúrbios diferentes de Homs", disse Ahmed. Duas vezes por semana um grande caminhão refrigerado sem placa de licença recolhia os sacos brancos. Ele diz que não sabe para onde eram levados. "Não podíamos fazer perguntas".
A tarefa de Ahmed terminou em 23 de março e ele desertou dois meses depois. Hoje vive na Turquia.

Sacos brancos com cadáveres

Um médico militar da cidade de Rastan que desertou mais tarde também tinha uma atribuição no hospital militar de Homs em meados de março de 2012. Ele também deu detalhes sobre o lugar de coleta de cadáveres, que viu no mesmo pátio do hospital. "Eu estive lá por pouco tempo, mas havia centenas.
Eles não podiam ter morrido ou sido mortos no hospital", disse. Ele não foi testemunha de uma operação de remoção de cadáveres, dizendo que apenas viu soldados embalando os corpos em sacos brancos.
Por que um regime que mata milhares de seus cidadãos, os reúne em um local discreto e os enterra em valas comuns escondidas, fotografa e enumera os mortos?

César diz que um motivo é para que os certificados de óbito pudessem ser emitidos. Mas por que documentar buracos de balas e sinais de estrangulamento diante do interesse em esconder a verdadeira causa da morte? O segundo motivo mencionado por César parece mais importante. O regime queria fazer um registro de qual serviço de segurança foi responsável por qual morte, ele disse, segundo o relatório. Uma espécie de relatório de desempenho em brutalidade.
Até o final de 2012 a agência de segurança militar, o serviço secreto da força aérea, o aparelho de segurança do Estado e outros órgãos muitas vezes trabalhavam com objetivos cruzados. Por isso, alguns dos procurados pelas autoridades conseguiam escapar - por exemplo, porque estava na lista de uma agência, mas não da de outra. Diante da confusão, documentar quem matou quem talvez se tornasse mais importante do que encobrir toda a operação.
A partir de fevereiro de 2012, milhares de moradores de Homs desapareceram no rastro do ataque da quarta divisão aos bairros rebeldes da cidade. Se as vítimas pertenciam à oposição ou não era irrelevante para as sentenças de morte subseqüentes - o endereço errado muitas vezes bastava. Mas os homens cujos cadáveres o soldado e o médico militar viram mais tarde no pátio interno do hospital militar de Homs ainda não mostravam indícios de penúria sistemática, como é evidente em muitas imagens fornecidas por César.
Isso começou mais tarde. A partir de 2013, vários cadáveres e prisioneiros libertados muito magros começaram a aparecer. O médico britânico Abbas Khan, que chegou à Síria no final de 2012 para ajudar a tratar os feridos nos hospitais, também foi tomado em custódia pelo exército e torturado até a morte em uma prisão pertencente à agência de segurança militar.

Durante um ano inteiro sua família tentou sua libertação; sua mãe viajou a Damasco e até conseguiu visitar o filho com a ajuda de diplomatas, advogados e intermediários. Ela disse que mais tarde ele foi torturado com cigarros e choques elétricos e claramente passava fome, pesando pouco mais de 30 quilos. "Ele parecia um esqueleto", disse.

A busca pelo número 417

Um parlamentar britânico prometeu viajar à Síria para buscar sua libertação e a família ficou esperançosa. Mas em 17 de dezembro veio a notícia oficial de que Khan tinha se enforcado na cela. Sua irmã Sara, comentando que ele estava esperançoso de que seria libertado em breve, disse não acreditar na história do suicídio.
Lugares de coleta de cadáveres como o de Homs também foram estabelecidos em Damasco. Foi um erro que levou um agente imobiliário a passar cinco dias no centro do apocalipse lá durante sua busca por seu irmão. Ele tinha sido morto, aparentemente por engano, em novembro de 2012.
"Tínhamos conexões muito elevadas, conhecíamos o diretor do serviço secreto da força aérea", disse o agente imobiliário durante uma reunião em abril passado. "Por isso eu recebi ajuda oficial na busca por seu corpo."

Primeiro ele foi a uma divisão do serviço secreto em Damasco e depois ao hospital militar em Harasta, a leste da cidade. "Os mortos estavam deitados uns sobre os outros em oito ou nove camadas. Estavam no porão, no pátio, nos corredores, em toda parte, e outros continuavam chegando. Todos os serviços levavam seus cadáveres para lá."
A segurança militar forneceu dez soldados para ajudar o agente imobiliário em sua busca. "Durante cinco dias, eles carregaram cadáveres de uma pilha para outra", em busca de seu irmão, o número 417. "Mas ele já havia desaparecido."
Disseram-me que ele também poderia examinar fotos das 1.550 pessoas da região de Damasco que haviam sido mortas nos últimos dois meses. "Mas, eles disseram, desculpando-se, eram apenas aqueles do seu serviço. Não tinham os outros." Mas o número 417 não estava entre eles.  
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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