terça-feira, 30 de julho de 2013

Segurança: montadoras fazem no Brasil o que é proibido em casa
Pedro Kutney - UOL   
Embora não tenha testado nenhum carro fabricado no Brasil, mas dois deles vendidos aqui (os argentinos Chevrolet Agile e Renault Clio), o início da quarta fase de testes de segurança veicular do Latin NCAP põe a nu uma vergonha latino-americana: são vendidos na região veículos com projetos ultrapassados e níveis de segurança inaceitáveis para o mundo desenvolvido.
Pior: tirando apenas duas marcas chinesas que só vendem produtos em mercados tolerantes a esse tipo de desvio, todas as outras nove montadoras que tiveram seus automóveis testados no programa do Latin NCAP desde 2010 são multinacionais de prestígio global, que fazem na América Latina o que há muito tempo não podem fazer em seus países de origem.
O fato é que, após quatro fases de testes do Latin NCAP, pouca coisa melhorou. Todos os 32 carros já avaliados apresentam graves falhas de segurança a seus ocupantes em caso de acidente. A conclusão é de que andar nos veículos mais populares vendidos nos países latino-americanos representa um risco à vida.

O problema é justamente esse: a legislação de segurança veicular do Brasil e de todos os países
latino-americanos é frágil, está sempre atrasada em relação a mercados desenvolvidos. Isso porque os técnicos e legisladores são fortemente influenciados pelo lobby das montadoras, que ameaçam frequentemente com queda de vendas e fechamento de vagas de emprego caso não possam mais vender aqui carros com o menor custo possível e o maior lucro desejável.

Exemplo prático disso aconteceu em 1997, quando entrou em vigor o atual Código de Trânsito Brasileiro. O projeto aprovado no Congresso, que seguiu para sanção presidencial, previa a introdução obrigatória de airbags frontais em todos os novos projetos de carros fabricados no Brasil a partir de 1998. O então presidente Fernando Henrique Cardoso, a conselho da Casa Civil, simplesmente vetou este artigo do código. Só em 2014, 17 anos depois, 100% dos veículos vendidos no país serão obrigados a ter o equipamento de segurança.
DESQUALIFICAÇÃO
Enquanto isso, nos países da União Europeia, os veículos são obrigados a ter airbags e sistema de freios com antibloqueio de rodas (ABS) desde os anos 1990. Nesta década, foi estabelecido que devem ter também o controle eletrônico estabilidade (ESC). Mais: a partir do ano que vem nenhum carro conseguirá cinco estrelas nos testes do Euro NCAP se não sair de fábrica com pelo menos um sensor para detecção e alerta de possíveis riscos, como a travessia de pedestres. Isso não será obrigatório por lei, mas na Europa ter cinco estrelas no Euro NCAP é um argumento importante de marketing e vendas para qualquer montadora. Aqui, a preocupação é desqualificar a versão latino-americana do NCAP.
É o que fez a associação dos fabricantes de veículos instalados no Brasil, a Anfavea, em 18 de julho, quando distribuiu "nota de esclarecimento" a todos os veículos de comunicação que publicaram notícia sobre o aumento de rigor nos testes do Latin NCAP, quando a entidade voltou a divulgar que, tomando por base suas avaliações, em 2012 na América Latina foram vendidos cerca de 450 mil veículos que podem apresentar sérios riscos no caso de acidentes.

ANFAVEA: SEGUIMOS A LEI

A Anfavea, associação que representa as fabricantes de automóveis, tem assumido a reposta oficial (e geral) aos resultados do Latin NCAP. Após a divulgação da Fase 4 dos testes, na semana passada, divulgou nota em que sublinhou a ausência de airbags no Chevrolet Agile e no Renault Clio que zeraram em segurança -- e lembrou que o item será obrigatório em 2014.
Outro argumento da Anfavea é que testes semelhantes nos Estados Unidos são feitos com velocidade pré-impacto de 48 km/h, e na Europa, de 56 km/h. O Latin NCAP provocou as colisões a 64 km/h.
"As instituições independentes devem ser respeitadas, mas com a ressalva de que elas seguem critérios próprios, que não necessariamente condizem com aqueles adotados pelas legislações estabelecidas em nenhum lugar do mundo. Os automóveis produzidos e comercializados no Brasil são seguros e os testes de colisão em nosso país tiveram início em 1973 com a publicação de norma brasileira, já baseada em legislações internacionais", disse Luiz Moan, presidente da Anfavea.
A General Motors, dona da marca Chevrolet, não quis se pronunciar. A Renault, responsável pelo Clio, disse que a configuração do modelo testada pelo Latin NCAP "corresponde à regulamentação em vigor nos mercados onde é vendido, já que as regulamentações sul-americanas ainda não exigem o airbag". E acrescentou: "Se nos baseássemos no protocolo do Latin NCAP em vigor em 2012 [os critérios foram endurecidos este ano], o Clio teria obtido uma estrela, assim como os seus concorrentes".
A resposta da Anfavea foi de simplicidade ímpar: "Os índices de classificação, como notas ou estrelas, não têm relação com a legislação e são produzidos por instituições independentes que adotam outros critérios, diferentes daqueles estabelecidos pelas legislações dos órgãos normativos".
Isso mesmo: aqui, os critérios do Latin NCAP são ruins porque (ainda) não têm relação com a legislação claramente atrasada, que não acompanha a evolução tecnológica de ponta. Na verdade, os testes são ruins porque não têm valor comercial e reprovam a segurança dos veículos; na Europa esses mesmos fabricantes têm maiores cuidados nos testes da entidade, porque lá cinco estrelas vendem carros -- e é mais fácil conquistar essa classificação com ajuda de uma legislação rigorosa e moderna.

RESULTADOS PÍFIOS
Com o início desta quarta fase de testes, desde 2010 o Latin NCAP soma 32 carros avaliados, de 11 marcas diferentes. Só um recebeu cinco estrelas; dez levaram quatro; cinco ganharam três; dois ficaram com duas; nove com apenas uma; e cinco não conseguiram sequer uma.
Após três anos de testes, na quarta fase do programa do Latin NCAP que começou em julho com seis carros testados, apareceu o primeiro que conseguiu cinco estrelas, o León, da Seat -- marca do Grupo Volkswagen. Esse resultado, contudo, não tem nada de alentador. Muito pelo contrário, só reforça a desconfiança sobre a segurança dos veículos fabricados e vendidos exclusivamente na América Latina.
O León testado é, na verdade, um modelo europeu, fabricado na Espanha e exportado de lá para poucos mercados latino-americanos, sendo o México o maior deles. O teste foi patrocinado (isso quer dizer que a Seat pagou pela avaliação) e a versão testada tem seis aibags de série desde o pacote mais básico. [O León é equivalente ao Golf 7.]
Vistos sob esse mesmo ângulo, dos dez carros já testados pelo Latin NCAP que obtiveram quatro estrelas, nada menos que oito foram testes patrocinados por oito fabricantes (Ford, General Motors, Nissan, Toyota, Honda, Renault, Volkswagen e Suzuki). Ou seja: essas montadoras puderam escolher suas melhores opções de modelos.
Os únicos que obtiveram quatro estrelas em testes sem patrocínio foram os Ford EcoSport e New Fiesta, atualmente fabricados no Brasil e, não por acaso, modelos globalizados [iguais no mundo todo, independentemente do local de produção], que têm mais equipamentos de segurança porque são vendidos também em países desenvolvidos, onde simplesmente não se concebe a propriedade de carros com níveis tão baixos de segurança.
Dos 14 carros testados pelo Latin NCAP que tiveram uma ou nenhuma estrela (11 deles vendidos no Brasil e oito fabricados aqui), nenhum teve a avaliação patrocinada pelos fabricantes. Isso quer dizer que foram escolhidos pela entidade justamente por serem os mais baratos e mais vendidos de seus mercados; desses, somente o chinês JAC J3 tinha airbags frontais, porque não há opção à venda sem esse equipamento. Portanto, muito mais gente está sujeita aos riscos desses modelos em caso de acidentes.
MAIS RIGOR, MENOS MORTES
No Brasil morrem perto de 40 mil pessoas por ano em acidentes de trânsito, outras 100 mil saem feridas dessa verdadeira guerra civil não declarada. Na Alemanha, um país altamente motorizado, o aperto na legislação reverteu essa tendência trágica. Numa escala ascendente, o país chegou ao pico de mais de 20 mil mortes no trânsito no fim dos anos 1960, quando o cinto de segurança se tornou obrigatório.
Desde então as fatalidades vêm caindo de forma constante, com maior força a cada introdução (não necessariamente obrigatória) de um novo equipamento, como ABS e airbags nos anos 1980, controle de estabilidade (ESC) a partir dos 1990, até chegar a menos de 5 mil mortes até agora em 2013, quando começam a ser lançados sistemas de assistência de frenagem e direção.
Seria o caso de seguir bons exemplos, apertar a legislação e parar de reclamar de critérios. As montadoras poderiam, sim, perder alguns ganhos, mas a sociedade lucraria mais.
Pedro Kutney é editor em Automotive Business, onde publicou este artigo

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