quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Ligação de especiarias com intoxicações alimentares muda agricultura
Gardiner Harris - NYT
Marcelo Negromonte/UOL

Temperos podem ser a causa de muitas intoxicações alimentares, defende órgão americano
Temperos podem ser a causa de muitas intoxicações alimentares, defende órgão americano
Os temperos e especiarias cultivados aqui em Ghats Ocidental, local sempre envolto em neblina, têm alimentado guerras, gerado fortunas e até mesmo estimulado a descoberta de continentes. Durante milhares de anos, os agricultores têm feito suas colheitas usando as mesmas formas tradicionais. Isso até agora.
A ciência revelou o que reis e sultões do passado nunca souberam: em vez de melhorar a saúde, as especiarias, às vezes, deixam as pessoas muito doentes. Por isso funcionários do governo da Índia estão discretamente pressionando seus agricultores para que adotem algumas das mais profundas alterações já implementadas nos métodos de colheita, secagem e debulhamento de seus ricos produtos.
A Food and Drug Administration (FDA, agência do governo dos Estados Unidos que fiscaliza e regulamenta remédios e alimentos) deve divulgar em breve uma análise abrangente que apontará as especiarias importadas, encontradas em quase todas as cozinhas do mundo ocidental, como uma fonte surpreendentemente potente de intoxicação por salmonela.
Em um estudo realizado em mais de 20 mil carregamentos de alimentos importados, a agência de fiscalização dos EUA descobriu que cerca de 7% dos lotes de especiarias estavam contaminados com salmonela, o dobro da média de contaminação de todos os outros alimentos importados. Cerca de 15% do coentro e 12% das remessas de orégano e manjericão estavam contaminadas. Além disso, altos níveis de contaminação também foram detectados em sementes de gergelim, no curry em pó e no cominho. E 4% das remessas de pimenta do reino estavam contaminadas.
Nos Estados Unidos, todos os anos 1,2 milhão de pessoas ficam doentes devido à salmonela, uma das causas mais comuns de doenças de origem alimentar. Mais de 23 mil pessoas são hospitalizadas e 450 morrem.
Os sintomas da contaminação por salmonela incluem diarreia, febre e dores abdominais, que começam a ser sentidas de 12 a 36 horas após a infecção e podem durar de três a cinco dias. A morte pode ocorrer quando a infecção se espalha e passa dos intestinos para a corrente sanguínea, afetando órgãos vitais. Crianças e idosos são os mais vulneráveis.
O México e a Índia registraram a maior parcela de especiarias contaminadas. Cerca de 14% das amostras provenientes do México continham salmonela, segundo o estudo, resultado que as autoridades mexicanas contestam.
As exportações de especiarias da Índia foram as segundas mais contaminadas, com cerca de 9% do total analisado. Mas a Índia exporta para os Estados Unidos um volume de especiarias quase quatro vezes maior do que o México e, por isso, os problemas de contaminação gerados pelos produtos indianos são especialmente preocupantes, disseram as autoridades. Quase um quarto das especiarias, dos óleos e dos corantes alimentares usados nos Estados Unidos são provenientes da Índia.
As conclusões – resultado de um estudo de três anos que funcionários da FDA já discutiram publicamente e que foi publicado recentemente pela revista "Food Microbiology" – compõem uma parte importante da análise de temperos e especiarias que será tornada pública "em breve", disseram funcionários da agência.
"A salmonela é um problema generalizado nas especiarias importadas", disse em entrevista Michael Taylor, vice-comissário de alimentos da FDA. "Nós decidimos que as especiarias são uma das questões importantes que precisamos de abordar agora."
Os ocidentais são particularmente vulneráveis às especiarias contaminadas, pois produtos como a pimenta e outros temperos são adicionados à mesa, sem cozimento prévio, o que possibilita que as bactérias peguem carona nesses produtos e sejam consumidas vivas. As bactérias não sobrevivem a temperaturas elevadas e, por isso, as especiarias contaminadas apresentam menos problemas quando adicionadas durante o cozimento, como geralmente ocorre na culinária da Índia e da maioria dos outros países asiáticos.
O chefe de inspeções de segurança alimentar do México insistiu que as especiarias mexicanas são verificadas diariamente e que são seguras, embora um outro estudo tenha encontrado altos níveis de contaminação por salmonela em alguns legumes mexicanos.
"Nós temos um esquema constante e diário de verificação" de produtos alimentares, disse Álvaro Pérez Vega, comissário de operações sanitárias da Comissão Federal do México para a Proteção contra Riscos Sanitários. "Nós não temos nenhum relato de temperos ou condimentos fora das normas", acrescentou ele.
Na Índia, o maior produtor, consumidor e exportador de especiarias do mundo, os funcionários do governo estão levando a sério as preocupações de Washington.
"O mundo quer especiarias seguras, e nós estamos comprometidos a fazer isso acontecer", disse o dr. A. Jayathilak, presidente do Conselho de Especiarias da Índia, agência governamental que regula e promove as especiarias do país.
Testes realizados pela FDA descobriram que as especiarias contaminadas tendem a conter muito mais tipos de salmonela do que aqueles tipicamente encontrados em carnes contaminadas. A agência norte-americana, que inspeciona visualmente menos de 1% de todos os alimentos importados e realiza testes de laboratório em uma pequena fração desses produtos, rejeita as importações que tenham indícios de contaminação por salmonela, pois ficou demonstrado que apenas dez células podem causar uma infecção grave.
As doenças causadas por especiarias são difíceis de rastrear. Quando perguntadas sobre o que pode ter causado sua intoxicação alimentar, as pessoas raramente pensam em mencionar a pimenta colocada na salada. As especiarias ficam nas prateleiras das cozinhas por períodos de tempo muito longos. Por isso vinculá-las a doenças que podem ocorrer anos depois é muitas vezes impossível.
Mas sofisticados sequenciamentos de DNA dos vários tipos de salmonela existentes estão finalmente permitindo que autoridades e funcionários da área de alimentos identifiquem as especiarias como as causadoras de diversos surtos de intoxicação alimentar, incluindo um ocorrido em 2010 que envolveu pimenta preta e pimenta vermelha e que afetou mais de 250 pessoas em 44 Estados dos EUA. Depois de um surto de 2009, que foi relacionado à pimenta branca, uma inspeção constatou que a salmonela havia infectado grande parte da unidade de processamento de especiarias de Union City, na Califórnia, durante o auge do surto.
Os Estados Unidos são um dos maiores importadores de especiarias do mundo, tendo comprado 326 toneladas desses produtos no exterior em 2012, volume avaliado em US$ 1,1 bilhão, de acordo com o Departamento de Agricultura dos EUA. Dessas importações, que representam mais de 80% do suprimento total de especiarias dos Estados Unidos, 19% vieram da Índia e 5%, do México.
Atualmente, a FDA tem escritórios em Nova Déli e Mumbai, e sua comissária, a dr. Margaret A. Hamburg, pretende visitá-los em breve.
As novas regras da agência que regem os gêneros alimentícios importados deram à FDA o poder de restringir as importações com base unicamente na suspeita de que os alimentos possam ser perigosos – uma medida poderosa para exigir mudanças dos produtores.
Em um tour por uma paisagem tropical repleta de fazendas de pimenta e cardamomo, além de plantações de borracha e chá e elefantes selvagens, as autoridades responsáveis pelo setor de especiarias da Índia mostraram algumas das mudanças voluntárias estão sendo estimuladas.
A primeira parada foi na fazenda de pimenta de 4 hectares de Noble Joseph, que fica a cerca de quatro horas de carro da cidade portuária de Kochi, localizada no estado de Kerala, na região sudoeste da Índia e a vários milhares de metros de altitude, escondida atrás de tortuosas estradas incrustradas nas montanhas.
A fazenda nas montanhas de Joseph é dominada por finos carvalhos prateados e por pés de eritrina (conhecida como mulungu em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais), que são plantados a cada 2,5 metros. Cada árvore é cercada por quatro ou cinco vinhas de pimenta.
Durante a época de colheita, que começa em fevereiro, 15 trabalhadores se espremem em uma pequena fazenda durante quase dois meses e usam longas escadas de bambu (confeccionadas com uma única haste) para colher as sementes de pimenta a partir das vinhas, que se erguem até 12 metros acima do solo.
Não muito tempo atrás, praticamente todos os produtores de pimenta secavam as sementes em esteiras de bambu ou em pisos de terra e, em seguida, as reuniam para fazer a debulha manual. Sujeira, esterco e salmonela simplesmente faziam parte da colheita. Tanto que, em 1987, a FDA bloqueou as remessas de pimenta provenientes da Índia. A proibição foi suspensa dois anos mais tarde, depois de o governo indiano iniciar um programa de testes nos produtos que exportava.
Agora, os Joseph fervem sua colheita em água para limpar os grãos, os secam a altas velocidades e tentam fazer com que eles tenham uma cor uniforme. Em seguida, os grãos são colocados em lonas, distribuídos por uma laje de concreto e circundados por redes para evitar a contaminação por excrementos de pássaros. Utilizar fornos para esterilizar a especiaria seria ainda mais higiênico, mas fornos e eletricidade são caros e "a luz solar é de graça", disse Joseph.
O conselho de especiarias arca com um terço do custo de lajes de concreto, lonas e debulhadoras mecânicas. E, como a maioria das fazendas tem uma área inferior a meio hectare, o órgão organizou cooperativas de produtores para compartilhar as instalações. Recentemente, funcionários do conselho indiano participaram de seminários de treinamento da FDA em Maryland.
A salmonela pode sobreviver indefinidamente em especiarias secas, e matar as bactérias presentes na superfície irregular das pimentas secas sem arruinar seu sabor é uma tarefa especialmente desafiadora.
Autoridades do governo indiano enfatizaram em entrevistas que as especiarias destinadas à exportação muitas vezes passam por tratamentos para a eliminação de quaisquer bactérias. Entre esses tratamentos estão o aquecimento por vapor, a irradiação ou a aplicação de óxido de etileno. Mas os inspetores da FDA encontraram altos níveis de contaminação por salmonela nas remessas que supostamente teriam recebido esses tratamentos, segundo mostram os documentos. Grande parte da pimenta contaminada responsável pelo surto de 2010 tinha sido tratada com vapor e óxido de etileno e havia sido testada e certificada como sendo segura, disseram as autoridades.
Em outra fazenda de especiarias, localizada na aldeia de Chemmanar, Bipin Sebastian está no meio de uma transição de quatro anos para a agricultura orgânica, na esperança de poder obter preços mais elevados para a pimenta, o cravo, o cardamomo, o açafrão e o café cultivados por ele. Sebastian diz que tem usado os subsídios do governo para comprar lonas, redes e uma máquina debulhadora.
"Nós costumávamos colocar nossa pimenta diretamente sobre o solo", disse Sebastian. "Agora colocamos lonas e redes sobre ela para protegê-la dos pássaros. E eu tenho conseguido preços maiores pelo produto. Tem sido ótimo".
Tradutor: Cláudia Gonçalves

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