A pobreza argentina
O Estado de S.Paulo
O governo da Argentina pode não gostar delas, mas as
estatísticas de institutos independentes sobre a real situação do país
continuam a ser produzidas - e mostram que todo o discurso sobre a
superação da miséria não resiste à frieza dos números mais simples.
O mais recente levantamento, feito pelo Observatório da Dívida Social
da Argentina, da Universidade Católica Argentina (UCA), indica que, em
2012, a pobreza atingiu 26,9% da população e a indigência, 5,8%, apesar
do formidável crescimento econômico desde 2003, que a presidente
Cristina Kirchner chamou de "década ganha". A deterioração é evidente:
em 1983, quando o país se redemocratizou, o porcentual de pobres era de
19,1% e o de indigentes, de 5,4%.
Trata-se de uma situação explosiva. A Argentina foi incluída pela
consultoria Economist Intelligence Unit (EIU) entre os países com "risco
muito alto" de rebeliões sociais em 2014. "Perda de poder de compra e
alta do desemprego nem sempre são seguidos de revolta popular", disse
Laza Kekic, da EIU. "Somente quando os problemas econômicos são
acompanhados de outros elementos de vulnerabilidade é que há algum risco
de instabilidade."
Pois é precisamente esse o problema argentino, identificado pelo
estudo da UCA. O drama dos mais pobres no país não se limita a uma
eventual alta de preços ou mesmo a dificuldades momentâneas de obter um
emprego. A ruína dos pilares da boa administração econômica no país
condenou essa parcela da população a uma permanente situação de penúria -
e, conforme mostram os números, trata-se de um contingente de
miseráveis cada vez maior.
Já são mais de 10 milhões os argentinos que vivem sem emprego formal,
em moradias improvisadas, sem atendimento médico básico e sem educação
de qualidade. Metade dos trabalhadores está em ocupações precárias ou
típicas de indigentes, como a de catadores de papel. O desemprego no
setor mais vulnerável da população passou de 16,5% em 2007 para 30,6% em
2012.
Além disso, 37% dos jovens não terminam o ensino médio, 23,5% das
residências precisam de assistência social permanente e 12% das crianças
entre 5 e 17 anos têm de trabalhar.
"Mais de uma década de crescimento não foi suficiente para resolver
os problemas da marginalidade estrutural que afeta ao menos um em cada
quatro argentinos", diz a pesquisa da UCA. Segundo o estudo, famílias
nessa situação, embora tenham obtido "direitos" nos últimos anos - é o
que dizem os governistas -, não conseguem emprego de qualidade nem
moradia digna, tampouco educação e saúde adequadas. São pessoas que
dependem permanentemente de programas de transferência de renda - que,
conforme destacam os pesquisadores, "não lhes permitem sair da condição
de exclusão estrutural".
Desse modo, fermenta uma "matriz social fragmentada, conflitiva,
violenta, débil nas regras de convivência democrática", diz a pesquisa,
numa advertência pertinente neste momento em que a Argentina vive grande
tensão, com saques e greves. Embora uma parte considerável da sociedade
do país tenha melhorado de vida na última década, tanto financeiramente
quanto em termos de direitos sociais, outra parte "continua privada de
condições básicas para o desenvolvimento humano e a integração cidadã".
À presidente Cristina Kirchner resta agarrar-se a estatísticas
delirantes para provar que, ao contrário das evidências, seu governo
acabou com a miséria. O mais fantástico desses números é o que qualifica
como pobre a família cuja renda mensal seja inferior a 1.750 pesos, o
equivalente a R$ 633. Observa-se o disparate quando se toma conhecimento
de que uma família com pai, mãe e dois filhos precisa de ao menos 3.900
pesos (R$ 1.410) para não ser considerada pobre - o gasto mínimo
somente com alimentos chegou, em novembro passado, a 2.200 pesos (R$
795) mensais, segundo institutos independentes.
Pelos critérios do governo, habituado a inventar estatísticas, a
pobreza atinge apenas 5,4% da população. No mundo real, porém, os pobres
argentinos somam quase 27% - e eles estão ficando cada vez mais
irritados.
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