Confrontos armados dão sinais de que Iraque e Líbano foram contaminados pela guerra na Síria
Benjamin Barthe - Le MondeAgora haverá uma outra guerra dentro da guerra na Síria. Após meses de um conflito latente, os rebeldes anti-Assad e os milicianos da Al Qaeda entraram em confronto aberto. Chocados com a violência perpetrada por esses extremistas nas zonas que estão sob controle deles e temendo a crescente influência que eles têm exercido sobre a insurreição, os principais grupos armados sírios lançaram, na sexta-feira (3), uma série de ataques contra as posições do Da'ech, apelido do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EILL), a encarnação da Al Qaeda no Oriente Próximo.
Mas essa reação pode ter sido tardia demais para conter a ascensão da jihad transacional na região. Na verdade, no mesmo dia, algumas centenas de quilômetros mais ao leste, no Iraque, combatentes do Da'ech, em guerra contra o autoritarismo e o sectarismo do premiê xiita Nouri al-Maliki, se apossaram de Faluja e vários bairros de Ramadi, as duas grandes cidades da província sunita de Anbar. Levado pelo clima de ódio entre as duas principais correntes do islã desencadeado pela guerra civil síria, o EIIL voltou com força para o país onde ele foi fundado, após a invasão americana de 2003, com o nome de Estado Islâmico no Iraque.
É possível até que essa organização esteja se fincando no Líbano, uma vez que ela reivindicou o atentado com carro-bomba que resultou em cinco mortos na quarta-feira (1) no subúrbio sul de Beirute, o quarto atentado perpetrado contra os setores xiitas da capital desde o início do verão. "Está emergindo um 'arco de crises' que vai desde o Iraque até o Líbano, o que prova que a região está sendo contaminada pela tragédia síria", analisa Peter Harling, do International Crisis Group. "Esse arco é composto por uma série de conflitos que se sobrepõem, de tons religiosos muito fortes, ainda que não se possa reduzir a atual agitação a um conflito entre xiitas e sunitas. Todas essas crises se beneficiam com o enfraquecimento das estruturas estatais, a erosão das fronteiras, a interpenetração das sociedades e o desengajamento americano no Oriente Médio."
Na Síria, a guerra contra o EIIL, que já fez dezenas de mortos, estourou depois que moradores dos arredores de Alepo acusaram alguns de seus membros de terem matado um médico. Estabelecido sobretudo no norte, esse grupo composto de vários combatentes estrangeiros logo atraiu a hostilidade das populações civis em razão de suas práticas ultraviolentas, como as decapitações infligidas aos soldados do regime de confissão alauíta, uma corrente dissidente do xiismo.
Embora suas ajudas com distribuições de alimentos o tenham tornado momentaneamente popular em certas regiões, sua reputação tem sofrido com a intolerância muitas vezes manifestada por seus membros, com a destruição de igrejas, imposição do uso do véu, prisão de jornalistas etc.
Diante da recusa dos líderes do Da'ech em entregar os assassinos do médico, brigadas afiliadas à Frente Islâmica, uma coalizão rebelde de obediência salafista, declararam guerra. Outros grupos armados logo se juntaram a esse ataque, inclusive a Frente Al-Nusra, um movimento afiliado à Al Qaeda, mas composto principalmente de combatentes sírios, muito mais bem integrados à rebelião.
Os confrontos, que partiram da província de Alepo (norte), se propagaram para Idlib (noroeste), Rakka (leste) e Hama (centro). Pressionado, o EIIL abandonou algumas de suas fortalezas, como Atmeh, na fronteira turca, ponto de passagem de lucrativos tráficos, onde ele foi substituído pela Ahrar al-Cham, uma brigada islamita. Cerca de 50 rebeldes foram mortos em represália, no domingo, através de execuções sumárias e atentados com carro-bomba, uma prática que o EIIL reservava até então às zonas sob controle das forças lealistas.
Chamada de "segunda revolução" por militantes convictos de que esses jihadistas estão fazendo o jogo do regime, a ofensiva é apoiada pela Coalizão Nacional Síria. O principal agrupamento de opositores vê ali uma oportunidade para melhorar sua imagem junto ao Ocidente, a poucas semanas de uma possível conferência de paz, em Montreux, na Suíça, programada para o dia 22 de janeiro.
"O EIIL conseguiu tirar proveito de suas redes e capacidades no Iraque para ter uma presença forte na Síria e usou sua presença na Síria para reforçar suas posições no Iraque", explica Daniel Byman, um analista do Brookings Center. Para acabar com esses vasos comunicantes, o governo central está tentando conseguir a adesão a seu combate de grandes tribos sunitas, atores-chave dessa região. A manobra lhe havia permitido reprimir uma primeira insurreição jihadista, em 2007-2008, com a ajuda de tropas americanas que evacuaram o país em 2011. Mas a tarefa de Maliki é hoje complicada pelo ódio sentido contra ele por grande parte da comunidade sunita que, de um ano para cá, tem protestado em vão contra sua marginalização dentro do aparelho do Estado. Esse movimento de protesto aos poucos se transformou em revolta armada, uma vez que o EIIL é somente mais um dentre os atores do caos que reina no país, onde 9.500 civis foram mortos em 2013.
Em viagem pelo Oriente Médio para apoiar as negociações entre Israel e Palestina em andamento, o secretário de Estado americano, John Kerry, afastou a hipótese de que os Estados Unidos voltarão a enviar tropas em solo. "Nós ajudaremos --as autoridades de Bagdá-- em seu combate, mas é um combate que elas mesmas devem vencer no final, e tenho confiança no fato de que elas conseguirão", ele declarou a partir de Jerusalém.
Já o Irã, o grande vizinho xiita, anunciou estar disposto a fornecer equipamentos militares, ao mesmo tempo em que também rejeita a ideia de enviar homens. Teerã parece confiante. Fortalecido pelo acordo temporário assinado com os Estados Unidos sobre seu programa nuclear, o regime iraniano por ora acredita estar em vantagem, em sua disputa de força à distância com a Arábia Saudita, defensora da causa sunita.
"A sensação de perseguição que por muito tempo estruturou o mundo xiita está mudando de lado", observa Harling. "Os sunitas mais sectários têm a impressão de que depois de ter tomado Bagdá e Beirute, sob domínio do Hezbollah, o Irã está se preparando para tomar Damasco deles. Eles temem um efeito dominó, e como se sentem abandonados por seu tradicional aliado, os Estados Unidos, eles estão dispostos a tudo para confrontá-los."
Nenhum comentário:
Postar um comentário