Dias de cão no jardim das ilusões de Dilma
José Nêumanne - O Estado de S.Paulo
Sempre que se fala em Glauber Rocha a tendência é
relembrar obras-primas do cinema nacional que dirigiu, como Deus e o
Diabo na Terra do Sol, principalmente, e Terra em Transe, primoroso
registro cinematográfico do subdesenvolvimento político nacional. Embora
o documentário Maranhão 66 já circule há muito tempo no YouTube, poucos
telespectadores o destacarão para o panteão em que figuram os dois
grandes filmes citados. Afinal, trata-se de trabalho encomendado e pago
e, portanto, suspeito de ser o registro hagiográfico de um político que
sobreviveu ao cineasta e ainda atua com força e poder na gestão pública
do seu Estado, onde seu clã reina até hoje, com raros interregnos
insignificantes, e também na cena federal.
No entanto, Maranhão 66 é uma obra que só melhora com o tempo, sem
ter sido necessária uma única mudança ou intervenção de seu diretor, o
que seria impossível tanto tempo após sua morte precoce. Como é possível
esse absurdo? Procure o filme e veja. O que assistirá é ao discurso
competente, bem alinhavado e de certa forma barroco do jovem deputado
federal do grupo rebelde da chamada banda de música da UDN nos anos 60
José Sarney assumindo o governo do Maranhão. As imagens acompanham, de
início, o povo na praça ouvindo o eloquente tribuno e, depois, fazem um
mergulho profundo num abismo de miséria e sordidez que confirma as
palavras ditas na praça denunciando a barbárie vivida por aquela gente
sob o jugo do padrinho e, depois, principal adversário do novo
governador, o pessedista Vitorino Freire. E, coerente com as ancestrais
utopias políticas nordestinas, prometendo uma era de paz, bonança e
prosperidade, similar às profecias de peregrinos como Antônio
Conselheiro, protagonista do massacre de Canudos. Hoje, quase meio
século depois, a miséria é a mesma, o discurso é igual e o filme de
Glauber, que parecia laudatório, torna-se uma denúncia política coerente
e forte.
Já não se fazem documentários em p&b como antigamente e talentos
como Glauber não existem mais. No entanto, o contraste brutal entre a
retórica salvacionista e a horrenda realidade do subdesenvolvimento real
manifesta-se de forma mais crua no cotidiano de informações e
entretenimento da televisão colorida do dia a dia.
Ao começar o último fim de semana do ano passado, os telejornais
diários exibiram de forma franca a atualidade ululante do documentário
de Glauber no Maranhão de 1966. Câmeras e microfones registraram o drama
de uma jovem mãe com seu bebê nos braços em peregrinação pelos
hospitais públicos de sua cidade para encontrar um pediatra para
consultar. Ela não estava no Vale do Jequitinhonha nem no sertão do
Piauí, mas em plena capital da República e seus arredores. A criança não
foi examinada, mas o secretário da Saúde do governo distrital, sob
comando petista, não teve pejo de registrar a ausência de pediatras em
sua jurisdição e terminou com a promessa de hábito: em março serão
contratados novos profissionais. A pobre mãe e seu bebê que os esperem.
Domingo, à noite, em horário nobre, com discurso dessemelhante ao de
seu aliado Sarney pelo estilo, mas bastante similar pelo afastamento da
realidade, a presidente Dilma Rousseff descreveu e deu números positivos
sobre o que seu governo tem feito pela saúde de pobres mães e bebês
como aqueles. Vieram médicos de Cuba e eles estão garantindo o
atendimento nos ermos do sertão brasileiro.
Por falar em sertão, os telejornais também noticiaram a falta de água
em Itapipoca, no interior do Ceará, porque uma adutora, que custou R$
16 milhões ao contribuinte, se rompeu e a construtora que vencera a
concorrência para construí-la faliu. Ninguém responde pela obra
inconclusa: os falidos sumiram e os que retomaram a obra nada têm a
dizer. O governador Cid Gomes - que rompeu com o chefão de seu partido
(PSB), Eduardo Campos, governador de Pernambuco, para ficar no palanque
da presidente petista - tentou resolver o problema mergulhando num
tanque buscando fechar um registro e evitar que a água vazasse. Enquanto
isso, a população da cidade não tem água para lavar, cozinhar ou matar a
sede de nenhum vivente.
Mas no Paraíso na Terra descrito por Dilma no domingo seguinte o País
vive uma prosperidade não só inédita na própria História, como singular
num planeta afundado em crise. E o único risco é provocado pela canalha
oposicionista que maldiz a própria terra criando empecilhos para
investimentos e prejudicando, assim, o pobre povo brasileiro. No
discurso da presidente, de 15 minutos recheados de deselegantes
gerúndios sem dês (estou fazeno, estou realizano, e por aí afora), os
anjos dizem-lhe sempre amém, mas o diabo corre atrás para demolir sua
fantástica obra de governo.
Só que no Maranhão governado por Roseana Sarney ainda resta um
exemplo de que o endereço de nosso inferno é o mesmo do Éden de Dilma,
embora o baiano Patinhas, que escreve seus discursos, não saiba. Na
Penitenciária de Pedrinhas, em São Luís, os chefões do crime organizado,
que à ausência de autoridade mandam e desmandam, matam com métodos
cruéis presos desassistidos pelo Estado cujas mulheres, irmãs e mães se
neguem a lhes prestar favores sexuais. O Conselho Nacional de Justiça já
contou 60 cadáveres e a Organização dos Estados Americanos cobrou
reação imediata dos governos do Estado e da União. Ninguém apareceu para
responder. O ofício foi para o Ministério da Justiça, o causídico
Cardozo negou ser assunto dele e o reencaminhou para a Secretaria dos
Direitos Humanos, cuja titular, Maria do Rosário, mandou de volta para o
destinatário original. "Não é comigo" é o jeito gerentão com que Dilma
modernizou o "não vi, não ouvi, não falei" do padim Lula de Caetés.
Infelizmente, contudo, ninguém encontrou nos longos e tediosos votos
presidenciais de boas-festas uma só referência à segurança do
bem-aventurado cidadão do Brasil sob a égide do PT e do PMDB. A vida de
seu súdito não é da conta dela, nunca foi, nunca será. Vade retro! E
amém nós tudo.
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