Crise envolvendo surto de pólio na Síria era tanto previsível quanto evitável
Adam P. Coutts e Fouad M. FouadA Organização Mundial de Saúde piorou o surto de pólio?
O desastre de saúde pública na Síria vem chegando há bastante tempo. Em
três anos de conflitos violentos, 125 mil pessoas morreram e milhões
foram desalojadas. O recente surto de poliomielite chamou a atenção do
mundo, e a ajuda internacional é bem-vinda. No entanto, esta crise era
tanto previsível quanto evitável.
O colapso do sistema de saúde e falta de saneamento básico em áreas administradas pela oposição criaram condições ideais para surtos de doenças evitáveis por meio de vacinação. A Síria erradicou a poliomielite há 14 anos; o fato de ela ter retornado representa mais do que um colapso da saúde durante a guerra civil. É sintomático de como a comunidade internacional, em sua resposta à crise, negligenciou a saúde pública.
A cobertura de imunização nas áreas da oposição já estava abaixo dos padrões em 2011, mas a situação se deteriorou. Dados sobre a vacinação de rotina da Organização Mundial de Saúde revelam que, nos últimos dois anos, uma grande proporção da população síria não foi vacinada.
Em toda a Síria, a cobertura caiu para 60% em 2012 e chegou a até 50% na cidade conflituosa de Deir al-Zour, no leste do país, linha de frente do combate entre o governo e forças rebeldes. Os números mais recentes da OMS de 2013 mostram que o nível agora baixou para 36% na província Deir al-Zour, tomada pelos rebeldes, embora tenha permanecido em 100% nas áreas controladas pelo governo, como o reduto de Tartus, no oeste.
Dadas essas condições, não foi nenhuma surpresa para os profissionais de saúde o fato de ocorrer um surto de poliomielite. A questão é por que a comunidade internacional não se preparou melhor para esta eventualidade. Uma parte perturbadora da resposta é que a própria ONU agravou a situação.
Como outras agências da ONU, a Organização Mundial de Saúde trabalha diretamente com o governo sírio. O escritório da OMS na Síria fica no prédio do Ministério da Saúde em Damasco; muitos de seus funcionários são ex-funcionários do ministério. Uma reportagem recente da Reuters sobre como o governo Assad usa restrições e ameaças para impedir que a ajuda chegue às áreas da oposição levantou dúvidas sobre a capacidade de a OMS agir com imparcialidade.
A OMS, trabalhando conjuntamente com o governo sírio, excluiu Deir al-Zour de uma campanha de vacinação contra a poliomielite que começou em dezembro de 2012. Segundo a OMS , a província "não foi incluída na campanha pois a maioria de seus moradores foi realocada para outras áreas do país". Dez meses mais tarde, foi nesta província que a pólio ressurgiu.
Não há provas de que a maior parte do um milhão de habitantes da província havia, de fato, migrado. O Programa Mundial de Alimentação da ONU continuou distribuindo alimentos lá ao longo de 2012 e 2013 (com interrupções ocasionais por causa da piora nas condições de segurança). Em dezembro de 2012, a agência atingiu 69 mil pessoas em Deir al-Zour.
No mês passado, uma investigação da revista semanal alemã Der Spiegel acusou a OMS de obstruir o exame de pólio para amostras da região de Deir al-Zour. Estas amostras foram apresentadas por uma agência que trabalha com patrocínio da Coalizão Nacional Síria. Levou quase um mês para obter os resultados dos exames --positivos para poliomielite-- de um laboratório independente na Turquia. Quando isso aconteceu, milhares de pessoas desalojadas já tinham se movimentado pela Síria ou se refugiado em países vizinhos, provavelmente espalhando a doença.
A última versão de um relatório da OMS sobre a situação na Síria revela que levou três meses para que a OMS e o Ministério de Saúde da Síria confirmassem um caso de pólio detectado em Aleppo em julho de 2013. Isso foi algumas semanas antes do início de uma campanha nacional de vacinação.
As conseqüências desses atrasos e falhas agora já atingem muito além das fronteiras da Síria. Líbano e Jordânia, para onde fugiu uma grande proporção de refugiados sírios, estão particularmente em risco. Seus sistemas de saúde pública já estão sobrecarregados e sem financiamento. Números da Unicef para a imunização, fornecidos pelo Ministério da Saúde do Líbano, indicam que apenas 77% da população foi rotineiramente vacinada para pólio nos últimos anos, colocando milhares de crianças libanesas em risco.
"Se os dados da Unicef estiverem corretos, isso seria muito pouco para impedir mais infecção", disse o professor Martin Eichner, especialista em doenças na Universidade de Tübingen, na Alemanha. "Com 4.000 refugiados sírios por dia deixando o país e a maioria indo para o Líbano, ou o vírus já está no Líbano ou chegará lá em breve."
Também não há nenhum plano concreto para entregar vacinas para centenas de acampamentos que abrigam até 200 mil refugiados sírios por todo o Líbano.
A situação de emergência não se limita à pólio. Embora o surto de pólio na Síria tenha ganhado as manchetes, outras doenças contagiosas como hepatite A, leishmaniose, febre tifóide e sarampo também têm aumentado. Doenças crônicas e não contagiosas como diabetes, hipertensão e câncer também vêm matando silenciosamente os sírios às centenas de milhares. Sabemos a partir de crises anteriores que até 80% do excesso de mortes é atribuído às condições mais amplas de saúde durante e após um conflito.
A situação é extremamente desafiadora, mas as agências humanitárias na região deveriam ser independentes e transparentes. Há desafios muito reais para os funcionários das Nações Unidas que trabalham na Síria, mas a Organização Mundial de Saúde deve responder às acusações de que se recusou a testar as amostras de pólio de Deir al-Zour, explicar por que demorou três meses para confirmar um caso suspeito em julho de 2013 e explicar melhor por que a área foi excluída de sua campanha de vacinação.
Menos do que isso arrisca causar mais mortes, que podem ser evitadas não só na Síria, mas por toda a região.
(Adam P. Coutts é pesquisador da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. Fouad M. Fouad, médico sírio, é professor-assistente visitante na faculdade de ciências médicas da Universidade Americana de Beirute.)
Tradutor: Eloise De Vylder
O colapso do sistema de saúde e falta de saneamento básico em áreas administradas pela oposição criaram condições ideais para surtos de doenças evitáveis por meio de vacinação. A Síria erradicou a poliomielite há 14 anos; o fato de ela ter retornado representa mais do que um colapso da saúde durante a guerra civil. É sintomático de como a comunidade internacional, em sua resposta à crise, negligenciou a saúde pública.
A cobertura de imunização nas áreas da oposição já estava abaixo dos padrões em 2011, mas a situação se deteriorou. Dados sobre a vacinação de rotina da Organização Mundial de Saúde revelam que, nos últimos dois anos, uma grande proporção da população síria não foi vacinada.
Em toda a Síria, a cobertura caiu para 60% em 2012 e chegou a até 50% na cidade conflituosa de Deir al-Zour, no leste do país, linha de frente do combate entre o governo e forças rebeldes. Os números mais recentes da OMS de 2013 mostram que o nível agora baixou para 36% na província Deir al-Zour, tomada pelos rebeldes, embora tenha permanecido em 100% nas áreas controladas pelo governo, como o reduto de Tartus, no oeste.
Dadas essas condições, não foi nenhuma surpresa para os profissionais de saúde o fato de ocorrer um surto de poliomielite. A questão é por que a comunidade internacional não se preparou melhor para esta eventualidade. Uma parte perturbadora da resposta é que a própria ONU agravou a situação.
Como outras agências da ONU, a Organização Mundial de Saúde trabalha diretamente com o governo sírio. O escritório da OMS na Síria fica no prédio do Ministério da Saúde em Damasco; muitos de seus funcionários são ex-funcionários do ministério. Uma reportagem recente da Reuters sobre como o governo Assad usa restrições e ameaças para impedir que a ajuda chegue às áreas da oposição levantou dúvidas sobre a capacidade de a OMS agir com imparcialidade.
A OMS, trabalhando conjuntamente com o governo sírio, excluiu Deir al-Zour de uma campanha de vacinação contra a poliomielite que começou em dezembro de 2012. Segundo a OMS , a província "não foi incluída na campanha pois a maioria de seus moradores foi realocada para outras áreas do país". Dez meses mais tarde, foi nesta província que a pólio ressurgiu.
Não há provas de que a maior parte do um milhão de habitantes da província havia, de fato, migrado. O Programa Mundial de Alimentação da ONU continuou distribuindo alimentos lá ao longo de 2012 e 2013 (com interrupções ocasionais por causa da piora nas condições de segurança). Em dezembro de 2012, a agência atingiu 69 mil pessoas em Deir al-Zour.
No mês passado, uma investigação da revista semanal alemã Der Spiegel acusou a OMS de obstruir o exame de pólio para amostras da região de Deir al-Zour. Estas amostras foram apresentadas por uma agência que trabalha com patrocínio da Coalizão Nacional Síria. Levou quase um mês para obter os resultados dos exames --positivos para poliomielite-- de um laboratório independente na Turquia. Quando isso aconteceu, milhares de pessoas desalojadas já tinham se movimentado pela Síria ou se refugiado em países vizinhos, provavelmente espalhando a doença.
A última versão de um relatório da OMS sobre a situação na Síria revela que levou três meses para que a OMS e o Ministério de Saúde da Síria confirmassem um caso de pólio detectado em Aleppo em julho de 2013. Isso foi algumas semanas antes do início de uma campanha nacional de vacinação.
As conseqüências desses atrasos e falhas agora já atingem muito além das fronteiras da Síria. Líbano e Jordânia, para onde fugiu uma grande proporção de refugiados sírios, estão particularmente em risco. Seus sistemas de saúde pública já estão sobrecarregados e sem financiamento. Números da Unicef para a imunização, fornecidos pelo Ministério da Saúde do Líbano, indicam que apenas 77% da população foi rotineiramente vacinada para pólio nos últimos anos, colocando milhares de crianças libanesas em risco.
"Se os dados da Unicef estiverem corretos, isso seria muito pouco para impedir mais infecção", disse o professor Martin Eichner, especialista em doenças na Universidade de Tübingen, na Alemanha. "Com 4.000 refugiados sírios por dia deixando o país e a maioria indo para o Líbano, ou o vírus já está no Líbano ou chegará lá em breve."
Também não há nenhum plano concreto para entregar vacinas para centenas de acampamentos que abrigam até 200 mil refugiados sírios por todo o Líbano.
A situação de emergência não se limita à pólio. Embora o surto de pólio na Síria tenha ganhado as manchetes, outras doenças contagiosas como hepatite A, leishmaniose, febre tifóide e sarampo também têm aumentado. Doenças crônicas e não contagiosas como diabetes, hipertensão e câncer também vêm matando silenciosamente os sírios às centenas de milhares. Sabemos a partir de crises anteriores que até 80% do excesso de mortes é atribuído às condições mais amplas de saúde durante e após um conflito.
A situação é extremamente desafiadora, mas as agências humanitárias na região deveriam ser independentes e transparentes. Há desafios muito reais para os funcionários das Nações Unidas que trabalham na Síria, mas a Organização Mundial de Saúde deve responder às acusações de que se recusou a testar as amostras de pólio de Deir al-Zour, explicar por que demorou três meses para confirmar um caso suspeito em julho de 2013 e explicar melhor por que a área foi excluída de sua campanha de vacinação.
Menos do que isso arrisca causar mais mortes, que podem ser evitadas não só na Síria, mas por toda a região.
(Adam P. Coutts é pesquisador da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. Fouad M. Fouad, médico sírio, é professor-assistente visitante na faculdade de ciências médicas da Universidade Americana de Beirute.)
Tradutor: Eloise De Vylder
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