Por trás da maquiagem, a crise real da indústria
ROLF KUNTZ - O Estado de S.Paulo
O pior saldo comercial em 13 anos - o pitoresco e
discutível superávit de US$ 2,56 bilhões - está longe de ser um desastre
isolado. Os números da balança retratam com precisão a crise
brasileira: uma indústria com enorme dificuldade para competir, o
descompasso entre consumo e produção, a política econômica feita de
remendos e improvisações e a dependência cada vez maior de uns poucos
setores ainda eficientes, com destaque para o agronegócio e a mineração.
O menos importante, nesta altura, é apontar a exportação fictícia de
plataformas de petróleo, no valor de US$ 7,74 bilhões, como evidente
maquiagem dos números. Muito mais instrutivos, nesta altura, são outros
detalhes. Uma dissecção da balança comercial, mesmo sumária, dá uma boa
ideia dos estragos acumulados na economia em dez anos, especialmente nos
últimos seis ou sete.
Sem os US$ 7,74 bilhões das plataformas, a exportação de
manufaturados fica reduzida a US$ 85,35 bilhões. Para igualar as
condições convém fazer a mesma operação com os números de 2012.
Eliminada a plataforma de US$ 1,46 bilhão, a receita desse conjunto cai
para US$ 89,25 bilhões. Sem essa depuração, o valor dos manufaturados
cresceu 1,81% de um ano para o outro, pela média dos dias úteis. Com a
depuração, o movimento entre os dois anos é uma assustadora queda de
5,13%.
Alguns dos itens com recuo de vendas de um ano para o outro: óleos
combustíveis, aviões, autopeças, veículos de carga, motores e partes
para veículos e motores e geradores elétricos. No caso dos aviões, a
redução de US$ 4,75 bilhões para US$ 3,83 bilhões pode estar relacionada
com oscilações normais no ritmo das encomendas e da produção. Mas o
cenário geral da indústria é muito ruim. No caso dos semimanufaturados, a
diminuição, também calculada pela média dos dias úteis, chegou a 8,3%.
Não há como atribuir esse resultado à crise internacional, até porque
várias economias desenvolvidas, a começar pela americana, avançaram na
recuperação, Para a América Latina e o Caribe, grandes compradores de
manufaturados brasileiros, as vendas totais aumentaram 5,6%. Mesmo para a
Argentina as exportações cresceram 8,1%, apesar do protecionismo.
O problema no comércio com os mercados desenvolvidos está associado
principalmente ao baixo poder de competição da indústria, ou da sua
maior parte, e às melhores condições de acesso de produtores de outros
países. Mas essa é uma questão política. O governo brasileiro rejeitou
em 2003 um acordo interamericano com participação dos Estados Unidos.
Com isso deixou espaço a vários países concorrentes. No caso da União
Europeia, o grande problema tem sido o governo argentino. É o principal
entrave à conclusão do acordo comercial em negociação desde os anos
1990.
O Mercosul, promissor na fase inicial, tornou-se um trambolho com a
conversão prematura em união aduaneira. Os quatro sócios originais nunca
chegaram sequer a implantar uma eficiente zona de livre-comércio. Mas
foram adiante, assumiram o compromisso mal planejado da Tarifa Externa
Comum e aceitaram as limitações daí decorrentes. Nenhum deles pode,
sozinho, concluir acordos ambiciosos de liberalização comercial com
parceiros estranhos ao bloco.
De vez em quando alguém sugere, no Brasil, o abandono da união
aduaneira e o retorno à condição de livre-comércio. Poderia ser um
recomeço muito saudável, mas o governo brasileiro nem admite a discussão
da ideia. A fantasia de uma liderança regional - obviamente associada
ao terceiro-mundismo em vigor a partir de 2003 - tem sido um entrave
ainda mais danoso que as amarras da fracassada união aduaneira.
Em 2013 o pior efeito da crise global, para o Brasil, foi a redução
dos preços de commodities. Apesar disso, o comércio do agronegócio foi
muito bem. Até novembro, o setor exportou US$ 93,58 bilhões de
matérias-primas e produtos elaborados e acumulou um superávit de US$
77,88 bilhões. O saldo final deve ter superado US$ 80 bilhões, valor
anulado com muita folga pelo déficit da maior parte da indústria.
Em dezembro, só as vendas de milho em grão, carnes bovina e de
frango, farelo e óleo de soja, café em grão, açúcar em bruto e celulose
renderam US$ 3,87 bilhões. O quadro especial do setor, com valores
discriminados e reorganizados, aparecerá, como sempre, no site do
Ministério da Agricultura. Os números serão os do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, mas a arrumação seguirá
um critério diferenciado.
No caso do agronegócio, o poder de competição reflete os ganhos de
produtividade acumulados em três décadas, além da manutenção, nos
últimos anos, de um razoável volume de investimentos setoriais, como as
compras de caminhões e máquinas em 2013. A eficiência tem sido
suficiente para compensar, mas só em parte, as desvantagens logísticas.
Quando um setor respeitado internacionalmente mal consegue embarcar
seus produtos, é quase uma piada insistir na conversa do câmbio como
grande problema da economia nacional. Mas a piada convém a um governo
com graves dificuldades para formular e executar uma política de
investimentos públicos e privados.
Ainda no capítulo do humor, um lembrete sobre as exportações
fictícias de plataformas: o expediente foi realmente criado em 1999 para
proporcionar benefícios fiscais à atividade petrolífera. Até o ministro
da Fazenda, Guido Mantega, citou esse fato em entrevista. Mas essas
operações nunca foram usadas tão amplamente quanto no último ano. Em
2012, esse item rendeu US$ 1,46 bilhão à contabilidade comercial. Em
2013, US$ 7,76 bilhões, com aumento de 426,4% pela média diária.
Apareceu no topo da lista de manufaturados, acima de automóveis, aviões e
autopeças. Mas nem isso disfarçou os problemas de uma indústria
enfraquecida por anos de incompetência e irresponsabilidade na política
econômica.
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