Der Spiegel
A janela de seu escritório tem vista para Jerusalém, onde os edifícios de pedras calaras contrastam com a luz fraca do final da tarde. Mas os pensamentos de Otto Dov Kulka estão longe. "Vamos fazer uma viagem virtual", diz ele. Em seu computador, ele abre fotos em preto-e-branco que mostram as ruínas dos crematórios de Auschwitz – uma floresta de chaminés em ruínas em meio à grama alta.
Kulka passa o cursor pelas chaminés e pela grama. "Essa é a paisagem da minha infância", diz ele em voz baixa. Ele esteve em Auschwitz entre seus 10 e 11 anos de idade. Há um tom estranho em sua voz - não de tristeza, nem de raiva, mas de algo que soa como nostalgia. É quase estranho fazer a pergunta: ele está com saudades de Auschwitz?
"Bem, sim!" , ele exclama. "Auschwitz foi a minha infância! Aprendi a me tornar um humanista em Auschwitz."
Kulka não só diz esse tipo de coisa. Ele também escreve, e ao fazer isso conseguiu compor um dos livros mais surpreendentes já escritos sobre Auschwitz: "Paisagens da Metrópole da Morte: Reflexões sobre a memória e a imaginação".
É um título incômodo num gênero que já tem muitos livros e relatos de testemunhas oculares. Apesar de algumas críticas elogiosas, o livro de Kulka não atraiu a atenção que merece. Publicado pela primeira vez em inglês em janeiro, foi lançado dois meses depois na Alemanha, onde a primeira edição não se esgotou ainda.
Um ato de "extremo sarcasmo"
Em seu livro, Kulka não empatiza com a dor das vítimas ou a motivação dos carrascos. Como alguém olhando de fora, ele considera sua infância em Auschwitz da perspectiva do observador. Ele conclui uma espécie de uma auto-psicanálise, invocando imagens e cenas, perguntando-se sobre o seu significado, embora saiba que as questões terão que permanecer sem resposta.Numa passagem dessas, ele descreve a cena em que viu sua mãe pela última vez. Ela estava grávida e seria levada para outro campo de concentração, onde esperava que ela eo bebê, concebido em Auschwitz, sobrevivessem. Mas isso não aconteceria, ambos morreram pouco antes da libertação.
"Na minha tela mental eu vejo as imagens: uma imagem. Na verdade foram segundos, apenas segundos, de um adeus apressado depois do qual minha mãe se virou e começou a andar para longe em direção às estruturas cinzentas do campo. Ela usava um vestido leve que ondulava à brisa e eu assisti à medida que ela andava e desaparecia na distância. Eu esperava que ela virasse a cabeça, esperava um sinal de algum tipo. Ela não virou a cabeça... Eu não conseguia entender... Eu pensei sobre isso mais tarde, e penso nisso até hoje: por que ela não virou a cabeça, pelo menos uma vez?"
Em outra cena, desta vez no acampamento das crianças em Auschwitz, um homem judeu chamado Imre ensinava as crianças a "Ode à Alegria", da Nona Sinfonia de Beethoven. "Qual foi a intenção dele ao escolher executar aquele texto em particular, um texto que é considerado um manifesto universal de todos os que acreditam na dignidade humana, nos valores humanistas, no futuro – diante dos crematórios, no lugar onde a inexistência de futuro era talvez a única certeza? Era uma espécie de manifestação de protesto, absurda talvez, talvez sem propósito algum, mas uma tentativa de não renunciar e não perder (...) esses valores que por fim só as chamas podiam extinguir (…)?"
Décadas de silêncio público
Desta forma, Kulka entrelaça imagens e perguntas, misturando poemas em sua colagem de texto, juntamente com fotos que tirou em 1978, durante sua última visita a Auschwitz. O livro é um frenesi de cenas e pensamentos, e, nesse sentido, um reflexo da forma inquisitiva, associativa e errática com que as pessoas de fato experienciam a memória.O livro é ainda mais surpreendente quando combinado com o conhecimento de quem é o autor e o que ele fez até agora. Como professor emérito de história judaica na Universidade Hebraica de Jerusalém, Kulka passou toda a sua vida profissional à procura de explicações para os crimes dos nazistas.
Ele se dividiu em duas pessoas: a criança de olhos arregalados de seu livro, que vê mas não entende Auschwitz, e o acadêmico que tenta compreender e diz: "não devemos parar de buscar explicações para o curso da história, porque algo como o extermínio dos judeus pode acontecer de novo."
Kulka diz que ele é tanto a criança quanto o acadêmico, sempre. "Mas as duas dimensões de pensamento são indissociáveis: temos imagens e experiências primordiais que somos incapazes de explicar a nós mesmos, mas as complementamos com a exploração, para que possamos chegar o mais próximo possível da verdade."
Ele quase nunca mostrou o seu segundo eu, a criança de olhos arregalados, em público antes de "Paisagens", que foi publicado em seu 80º aniversário. Pouquíssimos de seus colegas sabiam que o professor era um sobrevivente de Auschwitz, e que havia deposto como testemunha no primeiro julgamento de Auschwitz em Frankfurt em 1964. Ele manteve a criança escondida, deixando-a sair à noite, quando ele se sentava em sua sala na universidade e fazia gravaçõe sobre Auschwitz. O livro é baseado nessas gravações e em seus diários.
É difícil acreditar que Kulka tenha conseguido se manter em silêncio sobre Auschwitz durante tanto tempo. Agora, sentado em seu escritório, ele vê o olhar intrigado no meu rosto quando fito a tatuagem em seu antebraço, onde o número 148975, do campo de concentração, é claramente reconhecível. Ele diz: "Eu tinha pelos mais grossos e mais escuros, e não era fácil ver o número. Você sabe, era assim: eu não dizia nada, e quase ninguém perguntava".
A lei da "Grande Morte"
Escureceu lá fora e Kulka me convidou para jantar num restaurante com vista para a cidade velha de Jerusalém. No caminho, ele escuta música clássica no rádio. Ele diz que tira férias todos os para ir a um festival de música de câmara em Tiberíades, na Galiléia.No restaurante, os palestinos estão sentados numa mesa e judeus em outra. Ambos os grupos estão comemorando. Kulka está satisfeito com essa visão, com esse momento de paz. Ele faz o pedido e começa a contar histórias, fazer algo que ele não faz em "Paisagens". Ele fala sobre sua vida, desde o início até os dias atuais, como uma narrativa coesa.
Ele nasceu em 16 de abril no que ele chama de "ano fatídico" de 1933, na pequena cidade tcheca de Nový Hrozenkov. Os nazistas haviam assumido o poder lá em janeiro da quele ano, e em pouco tempo haviam aprovado as primeiras leis antissemitas.
Seus pais, Elly e Erich, falavam tcheco e alemão com ele, e ele tinha uma babá alemã. Otto completou o primeiro grau numa escola tcheca. Foi "um ano feliz", diz ele, mas depois ele foi expulso. Crianças judias não eram mais permitidas na escola.
Ele foi enviado para o gueto de Theresienstadt em 1942. "Foi uma salvação", diz ele hoje, em mais uma de suas frases idiossincráticas. "Como criança, eu fiquei feliz por finalmente estar com outras crianças novamente."
Sua mãe se alistou voluntariamente, e a Otto, para serem transportados a Auschwitz, uma vez que não queria ser separada de outros membros da família. Quando eles foram embora, Otto prometeu aos amigos que escreveria para eles dizendo se Auschwitz era melhores do que Theresienstadt.
Quando chegaram em Auschwitz, em 7 de setembro de 1943, ficou claro que seria o fim. Só uma lei se aplicava lá, "a lei da Grande Morte", como Kulka a chama.
Uma nova vida
Às vezes, ele e outras crianças criavam algum desafio, que chamavam de "experimentar um pouco a morte". Eles agarraram a cerca elétrica, que quase nunca funcionava durante o dia. Uma vez, quando ele entregou seu tio alguns alimentos através da cerca, do arame farpado foi eletrificada, e ele ainda tem as cicatrizes da oscilação de energia hoje.Ele esperava que a morte chegasse a qualquer dia. Ele fugiu uma vez, quando os assassinos o deixaram na enfermaria porque ele estava com difteria. Isso salvou sua vida. Em janeiro de 1945, ele e seu pai foram enviados para uma marcha da morte em direção ao centro da Alemanha nazista.
Em 24 de janeiro de 1945, Otto Kulka e seu pai conseguiu escapar durante a marcha. Eles voltaram para a Tchecoslováquia. Seu pai permaneceu em Praga, e em 1949, Otto embarcou em um navio com destino a Israel.
Durante a viagem, ele acrescentou o nome hebraico "Dov" ("Urso") ao seu nome alemão Otto. Ele não sabia o que isso significava, mas gostou de como soava. Hoje ele acha seu nome escolhido divertido. " Eu não me pareço em nada como um urso", diz ele. Kulka é baixo e tem uma compleição leve.
Israel era a utopia de um novo começo. "Eles tentaram destruir Jerusalém em Auschwitz, e é por isso que queríamos construí-la novamente", diz ele. Primeiro, ele foi a um kibutz, onde trabalhou na agricultura. Eventualmente, ele começou seus estudos: primeiro história antiga, em seguida medieval e, por fim, a história judaica contemporânea.
Seu professor de história judaica antiga, Menachem Stern, da Universidade Hebraica, foi assassinado por um palestino em seu caminho para o trabalho, que passava pelo Caminho da Cruz em Jerusalém. O assassino mais tarde testemunhou que ele queria matar um judeu, qualquer judeu.
A partir de então, a vida de Kulka foi moldada pelos conflitos entre palestinos e judeus, como a Guerra dos Seis Dias ea abertura e fechamento de várias zonas da cidade.
Isso o perturba, porque, como ele diz, ele tem "mente aberta" em relação aos palestinos. "Afinal, eles são nossos vizinhos."
Tradutor: Eloise de Vylder
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