Os espectadores do seriado britânico "Downton Abbey" perceberam como a primogenitura era capaz de destruir famílias logo no primeiro episódio, quando o Titanic afundou e Lord Grantham, pai de três filhas, ficou sem um herdeiro óbvio.
Por sorte, o primo distante que surgiu como herdeiro mais próximo se mostrou disposto a abandonar seu monótono emprego, casar com uma das filhas e astutamente ter um filho antes de morrer abruptamente na última temporada.
Mas qual é o destino das filhas sem herança e sem perspectivas, obrigadas a parecerem atraentes para esperar pelo marido adequado?
A prática da primogenitura – na qual os títulos e as propriedades são transferidos apenas para herdeiros homens, até mesmo para aqueles parentes esquecidos desenterrados em outros continentes – pode parecer tão ultrajante e antiquada quanto negar o voto às mulheres, mas ainda é a lei para a aristocracia na Inglaterra.
"Meu pai sempre dizia: 'lembre-se de usar o cinto de segurança, porque seu rosto é a sua fortuna'", diz Liza Campbell, filha do 25º lorde de Cawdor (sim, existe um na vida real, não só em "Macbeth"), e agora, depois da morte de seu pai, irmã do 26º.
Também conhecido como conde de Cawdor, o atual lorde, Colin, é o filho do meio entre cinco irmãos. Mas é o filho mais velho, e sempre foi considerado o mais importante, por motivos de continuidade do título. "Eu amo meu irmão, mas é uma situação peculiar", disse Campbell, 53, uma artista e escritora que cresceu na propriedade da família na Escócia – 50 mil acres, mais um castelo – mas agora vive em Londres. "Há um escolhido na família, e todos os outros são supérfluos para as exigências."
Até recentemente houve pouca vontade para mudar a lei, o que em parte reflete a incapacidade da Inglaterra em decidir, por fim, se sua aristocracia é uma parte essencial de sua identidade, um vestígio antiquado do passado ou um pouco das duas coisas.
"O aspecto arrogante disso cega as pessoas para o que é basicamente um sexismo dentro de uma minoria privilegiada, onde as meninas nascem inferiores aos meninos", diz Campbell.
Mas a questão vem se infiltrando pelo Parlamento desde a aprovação recente de uma lei que permite que a monarquia seja transferida ao primeiro filho de um monarca, independente do sexo (isso significa que o bebê de William e Kate se tornará o terceiro herdeiro do trono, quer seja menino ou menina). Novas propostas legislativas permitirão que a nobreza – basicamente, os títulos herdados e as propriedades que costumam acompanhá-los – seja transmitida também desta forma, para o primeiro filho, seja homem ou mulher.
"Parece que não nos livramos dos títulos, mas acho que, já que os temos, gostaria que eles não dependessem do gênero", disse o proponente do projeto de lei na Câmara dos Lordes, lorde Lucas of Crudwell and Dingwall, que por causa de uma idiossincrasia histórica é um dos poucos nobres cujos títulos podem ser transmitidos para mulheres além de homens.
A proponente na Câmara dos Comuns, Mary Macleod, conservadora, apontou que dos 92 nobres na Câmara dos Lordes, apenas duas são mulheres. "Isso afeta poucas pessoas, mas é simbólico", disse ela sobre a proposta. "O que está questionando é se, neste momento, achamos que homens e mulheres são iguais?"
As regras atuais criaram todo tipo de problemas familiares.
"Quando éramos crianças, sempre diziam 'quando seu irmão vier morar aqui...", disse uma mulher aristocrata que cresceu numa grande propriedade que ela amava e que foi herdada pelo irmão mais novo quando seu pai morreu. A mulher, que falou sob condição de anonimato por não querer instigar mágoas familiares, disse que ninguém nunca questionou o sistema.
"Embora meu pai tivesse testemunhado a quase falência de sua mãe por não ter herdado a casa em que ela havia crescido, ele não ajustou seu próprio comportamento em relação à sua filha", disse a mulher, agora com quase 60 anos. "Embora eu o amasse e ele me amasse, a regra da herança era tão sólida para ele quanto à de não ter filhos fora do casamento."
Ela tem sorte: seu irmão permite que ela e seus filhos visitem a casa sempre que querem. Algumas irmãs não têm tanta sorte assim. Os filhos do finado lorde Lambton, por exemplo, estão presos numa disputa sórdida por sua propriedade multimilionária, que quando ele morreu em 2006 foi herdada inteiramente pelo seu único filho homem, o caçula Ned.
Três de suas cinco filhas processaram o irmão, alegando que como lorde Lambton havia passado suas últimas décadas de vida numa mansão na Itália, sua propriedade deveria estar sujeita à lei italiana, que não observa a primogenitura. Elas pedem US$ 1,5 milhão cada. Seu irmão – cuja chegada na família, um filho muito esperado entre cinco filhas, foi comemorada com um boi assado e uma fogueira – processou-as de volta num tribunal inglês.
Alegando as disputas legais, as irmãs não quiseram comentar o assunto. Mas Peregrine Worsthorne, um importante escritor e comentarista político que é casado com Lucinda Lambton, uma das filhas, disse que o sistema havia devastado a família.
"É normal, se tudo é deixado para o filho mais velho, que ele tenha alguma consideração por seus irmãos", disse Worsthorne. "Elas não estão sendo gananciosas. Ele é um homem muito rico."
A situação causa outro tipo de problema para o conde e a condessa de Clancarty, que têm uma filha de oito anos mas ninguém para herdar o título da família, de centenas de anos de idade.
"Há uma sensação de que a linhagem vai ser interrompida depois de todos esses séculos", disse a condessa. "O título e a memorabília da família irão para alguém que nem conhecemos. Se houver alguém, ele está provavelmente na Austrália."
É interessante que ninguém esteja fazendo campanha para avançar ainda mais a questão, digamos, exigindo que as propriedades sejam divididas entre os filhos e não deixadas apenas para um deles. O sistema deixou intactas durante séculos muitas das maiores propriedades da Inglaterra, incluindo o Palácio de Blenheim, lar do duque de Marlborough; Chatsworth, casa do duque de Devonshire; e Highclere Castle, lar do conde de Carnarvon (e de Lord Grantham, no mundo televisivo).
Na Europa, entretanto, aconteceu o contrário: as propriedades foram divididas e as fortunas diluídas por causa de leis que tornaram impossível deserdar até mesmo herdeiros inadequados. Essas leis de "heranças obrigatórias" exigem que uma parte da propriedade seja dividida entre os filhos e a esposa do morto, e elas são aplicadas na Escócia bem como na maior parte do continente, diz Roderick Paisley, professor de lei escocesa na Universidade de Aberdeen.
"Na Escócia, você é obrigado a fazer provisões para os filhos, e na Inglaterra, você não precisa deixar um feijão sequer para eles", diz o professor Paisley. Ao falar sobre a nobreza em países que não têm monarcas, ele acrescentou: "a maioria dos países europeus aboliram qualquer noção de nobreza, então a herança de títulos não é feita por nenhuma lei reconhecida pelo estado. Pode muito bem ser como uma placa de carro – é assim que a maioria dos estados europeus veem esses títulos."
Na Inglaterra, Lady Clancarty e outros deram lançaram uma petição online pedindo ao Parlamento para aprovar as propostas e acabar com a discriminação de gênero entre os herdeiros da nobreza. Recentemente, dezenas de pessoas, incluindo nobres e mulheres e filhas de nobres, assinaram uma carta de apoio no "The Telegraph". Mas muitos outros recusaram.
"Muitas pessoas estão de fato preocupadas", diz Lady Clancarty. "Elas não querem assinar porque têm muito medo de prejudicar suas famílias. Ninguém quer cair na desgraça de um irmão ou contrariar um pai ou uma mãe. Há uma espécie de código de cavalheiros. Nós estamos dizendo que não há problema em erguer a voz."
Tradução: Eloise de Vylder
Por sorte, o primo distante que surgiu como herdeiro mais próximo se mostrou disposto a abandonar seu monótono emprego, casar com uma das filhas e astutamente ter um filho antes de morrer abruptamente na última temporada.
Mas qual é o destino das filhas sem herança e sem perspectivas, obrigadas a parecerem atraentes para esperar pelo marido adequado?
A prática da primogenitura – na qual os títulos e as propriedades são transferidos apenas para herdeiros homens, até mesmo para aqueles parentes esquecidos desenterrados em outros continentes – pode parecer tão ultrajante e antiquada quanto negar o voto às mulheres, mas ainda é a lei para a aristocracia na Inglaterra.
"Meu pai sempre dizia: 'lembre-se de usar o cinto de segurança, porque seu rosto é a sua fortuna'", diz Liza Campbell, filha do 25º lorde de Cawdor (sim, existe um na vida real, não só em "Macbeth"), e agora, depois da morte de seu pai, irmã do 26º.
Também conhecido como conde de Cawdor, o atual lorde, Colin, é o filho do meio entre cinco irmãos. Mas é o filho mais velho, e sempre foi considerado o mais importante, por motivos de continuidade do título. "Eu amo meu irmão, mas é uma situação peculiar", disse Campbell, 53, uma artista e escritora que cresceu na propriedade da família na Escócia – 50 mil acres, mais um castelo – mas agora vive em Londres. "Há um escolhido na família, e todos os outros são supérfluos para as exigências."
Até recentemente houve pouca vontade para mudar a lei, o que em parte reflete a incapacidade da Inglaterra em decidir, por fim, se sua aristocracia é uma parte essencial de sua identidade, um vestígio antiquado do passado ou um pouco das duas coisas.
"O aspecto arrogante disso cega as pessoas para o que é basicamente um sexismo dentro de uma minoria privilegiada, onde as meninas nascem inferiores aos meninos", diz Campbell.
Mas a questão vem se infiltrando pelo Parlamento desde a aprovação recente de uma lei que permite que a monarquia seja transferida ao primeiro filho de um monarca, independente do sexo (isso significa que o bebê de William e Kate se tornará o terceiro herdeiro do trono, quer seja menino ou menina). Novas propostas legislativas permitirão que a nobreza – basicamente, os títulos herdados e as propriedades que costumam acompanhá-los – seja transmitida também desta forma, para o primeiro filho, seja homem ou mulher.
"Parece que não nos livramos dos títulos, mas acho que, já que os temos, gostaria que eles não dependessem do gênero", disse o proponente do projeto de lei na Câmara dos Lordes, lorde Lucas of Crudwell and Dingwall, que por causa de uma idiossincrasia histórica é um dos poucos nobres cujos títulos podem ser transmitidos para mulheres além de homens.
A proponente na Câmara dos Comuns, Mary Macleod, conservadora, apontou que dos 92 nobres na Câmara dos Lordes, apenas duas são mulheres. "Isso afeta poucas pessoas, mas é simbólico", disse ela sobre a proposta. "O que está questionando é se, neste momento, achamos que homens e mulheres são iguais?"
As regras atuais criaram todo tipo de problemas familiares.
"Quando éramos crianças, sempre diziam 'quando seu irmão vier morar aqui...", disse uma mulher aristocrata que cresceu numa grande propriedade que ela amava e que foi herdada pelo irmão mais novo quando seu pai morreu. A mulher, que falou sob condição de anonimato por não querer instigar mágoas familiares, disse que ninguém nunca questionou o sistema.
"Embora meu pai tivesse testemunhado a quase falência de sua mãe por não ter herdado a casa em que ela havia crescido, ele não ajustou seu próprio comportamento em relação à sua filha", disse a mulher, agora com quase 60 anos. "Embora eu o amasse e ele me amasse, a regra da herança era tão sólida para ele quanto à de não ter filhos fora do casamento."
Ela tem sorte: seu irmão permite que ela e seus filhos visitem a casa sempre que querem. Algumas irmãs não têm tanta sorte assim. Os filhos do finado lorde Lambton, por exemplo, estão presos numa disputa sórdida por sua propriedade multimilionária, que quando ele morreu em 2006 foi herdada inteiramente pelo seu único filho homem, o caçula Ned.
Três de suas cinco filhas processaram o irmão, alegando que como lorde Lambton havia passado suas últimas décadas de vida numa mansão na Itália, sua propriedade deveria estar sujeita à lei italiana, que não observa a primogenitura. Elas pedem US$ 1,5 milhão cada. Seu irmão – cuja chegada na família, um filho muito esperado entre cinco filhas, foi comemorada com um boi assado e uma fogueira – processou-as de volta num tribunal inglês.
Alegando as disputas legais, as irmãs não quiseram comentar o assunto. Mas Peregrine Worsthorne, um importante escritor e comentarista político que é casado com Lucinda Lambton, uma das filhas, disse que o sistema havia devastado a família.
"É normal, se tudo é deixado para o filho mais velho, que ele tenha alguma consideração por seus irmãos", disse Worsthorne. "Elas não estão sendo gananciosas. Ele é um homem muito rico."
A situação causa outro tipo de problema para o conde e a condessa de Clancarty, que têm uma filha de oito anos mas ninguém para herdar o título da família, de centenas de anos de idade.
"Há uma sensação de que a linhagem vai ser interrompida depois de todos esses séculos", disse a condessa. "O título e a memorabília da família irão para alguém que nem conhecemos. Se houver alguém, ele está provavelmente na Austrália."
É interessante que ninguém esteja fazendo campanha para avançar ainda mais a questão, digamos, exigindo que as propriedades sejam divididas entre os filhos e não deixadas apenas para um deles. O sistema deixou intactas durante séculos muitas das maiores propriedades da Inglaterra, incluindo o Palácio de Blenheim, lar do duque de Marlborough; Chatsworth, casa do duque de Devonshire; e Highclere Castle, lar do conde de Carnarvon (e de Lord Grantham, no mundo televisivo).
Na Europa, entretanto, aconteceu o contrário: as propriedades foram divididas e as fortunas diluídas por causa de leis que tornaram impossível deserdar até mesmo herdeiros inadequados. Essas leis de "heranças obrigatórias" exigem que uma parte da propriedade seja dividida entre os filhos e a esposa do morto, e elas são aplicadas na Escócia bem como na maior parte do continente, diz Roderick Paisley, professor de lei escocesa na Universidade de Aberdeen.
"Na Escócia, você é obrigado a fazer provisões para os filhos, e na Inglaterra, você não precisa deixar um feijão sequer para eles", diz o professor Paisley. Ao falar sobre a nobreza em países que não têm monarcas, ele acrescentou: "a maioria dos países europeus aboliram qualquer noção de nobreza, então a herança de títulos não é feita por nenhuma lei reconhecida pelo estado. Pode muito bem ser como uma placa de carro – é assim que a maioria dos estados europeus veem esses títulos."
Na Inglaterra, Lady Clancarty e outros deram lançaram uma petição online pedindo ao Parlamento para aprovar as propostas e acabar com a discriminação de gênero entre os herdeiros da nobreza. Recentemente, dezenas de pessoas, incluindo nobres e mulheres e filhas de nobres, assinaram uma carta de apoio no "The Telegraph". Mas muitos outros recusaram.
"Muitas pessoas estão de fato preocupadas", diz Lady Clancarty. "Elas não querem assinar porque têm muito medo de prejudicar suas famílias. Ninguém quer cair na desgraça de um irmão ou contrariar um pai ou uma mãe. Há uma espécie de código de cavalheiros. Nós estamos dizendo que não há problema em erguer a voz."
Tradução: Eloise de Vylder
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