domingo, 19 de agosto de 2012

Sem propriedade privada não há moralidade e nem civilização
Ben O'Neill - IMB
O que são "meios de produção"? Qual a importância deles para uma sociedade? Como eles são criados, expandidos ou meramente mantidos? Qual a relação entre a ordem moral vigente de uma sociedade e seu nível de acumulação de capital?
Estas são questões sobre as quais economistas e filósofos políticos vêm meditando ao longo de toda a história do pensamento econômico. Se você já se pôs a pesquisar as diferenças entre capitalismo e socialismo, você certamente já terá ouvido falar no termo "meios de produção", e certamente já terá alguma ideia do quão importante eles são para a organização de uma sociedade.
Da mesma forma, você pode até já ter ouvido falar, mas talvez ainda não tenha dedicado muito tempo a constatar a relação entre capital e ordem moral. Com efeito, por que as pessoas comuns deveriam se preocupar com tais coisas? Meios de produção não seriam apenas algo sobre o qual universitários lêem entre uma balada e outra? Ou talvez não seriam algo exclusivamente da alçada de contadores e administradores, preocupados com as técnicas corretas do método contábil das partidas dobradas? Qual a sua grande importância?
Como, afinal, seria uma sociedade sem capital, sem meios de produção? Ela conseguiria manter a moralidade?
Ao contrário do que muitos imaginam, é perfeitamente possível imaginar como seria este mundo recorrendo apenas à teoria — muito embora a experiência dos países comunistas, nos quais os meios de produção foram exauridos, possa nos servir como um ótimo exemplo empírico. Um mundo sem meios de produção seria inóspito, frio e selvagem. As terras férteis, por não mais poderem ser trabalhadas da maneira correta, deixariam de ser cultiváveis. Haveria escassez de alimentos. A fome estaria por todos os lados. Isso levaria a saques e pilhagens, e, consequentemente, ao desaparecimento de lojas, mercearias e supermercados. Aqueles que porventura conseguissem coletar alimentos naturais para estocá-los teriam de vigiar continuamente suas posses, pois se tornariam presas de outros humanos famintos. No final, a fonte de alimentos seria uma só: a carne dos outros humanos. O homicídio e o canibalismo seriam práticas não apenas corriqueiras, como também totalmente necessárias para a sobrevivência.
1. Civilização, capital e ordem moral
De onde vem a nossa comida? O que permite a existência da civilização? Embora a civilização moderna seja bastante complexa, ela também é muito simples em sua essência, pois está erigida sobre três formas de capital físico que compõem os pilares de qualquer ordem civilizada.
Uma delas é o capital físico natural construído pelo homem, o qual os humanos utilizam para sobreviver e para realizar a produção de bens. Tratores, escavadeiras, britadeiras, serras elétricas, ferramentas em geral, computadores, maquinários, equipamentos de construção, edificações, fábricas, meios de transporte e de comunicação, minas, fazendas agrícolas, armazéns, escritórios etc. Estes bens de capital são os meios de produção. São eles que não apenas tornam o trabalho humano mais produtivo, como também possibilitam toda e qualquer produção e distribuição de bens e serviços.
Além deste capital físico, há duas correspondentes formas de capital humano: o conhecimento técnico para operar este capital físico e sustentar a produção de bens, e a ordem moral necessária para preservar o uso organizado dos recursos escassos. O grau de vida civilizada que existe atualmente só é possível porque herdamos de nossos antepassados capital físico e conhecimento tecnológico, e também porque temos algum senso da ordem moral necessária para preservar este arranjo.
A história da civilização é a história da acumulação de capital. Isso inclui não apenas a acumulação de capital físico, mas também uma correspondente acumulação de conhecimento técnico e moral. Somos civilizados apenas até o ponto em que passamos a nos perguntar que espécie de ordem moral é necessária para preservar a acumulação de capital. Qual tipo de ordem moral sustenta um meio de produção?
Vivendo em meio a uma civilização próspera, é fácil para as pessoas se tornarem levianas e petulantes quanto à ordem moral necessária para preservar a acumulação de capital. Não mais se dá o devido valor ao esforço e ao trabalho duro. Grandes estoques de bens de capital já estão disponíveis para nós, de modo que a preocupação de várias pessoas passa a ser apenas a de como "distribuir" estes bens de modo a satisfazer seu desejo e sua ânsia por "justiça social".
Em uma situação de tamanha abundância, é fácil o relativismo moral e o niilismo prosperarem. Tudo passa a ser subjetivo, e o 'bom' passa a ser qualquer coisa que "os representantes do povo" estipulem ser. Aqueles que fazem pouco caso das regras morais que preservam a acumulação de capital frequentemente imaginam estar atuando em prol dos fracos e oprimidos. Porém, um eventual colapso do capital acumulado traria o colapso de toda a civilização, e isto seria extremamente nocivo tanto para os fracos quanto para os fortes. Com efeito, se há alguém totalmente dependente da ordem civilizada, este alguém é justamente aquele que não tem a menor chance de sobreviver sob o jugo do mais forte em uma ordem sem civilização.
Na ausência de meios de produção para sustentar a civilização, o homem retornaria à sua natureza predatória, o que levaria à inevitável degeneração da ordem moral.
2. Por que não estamos nos canibalizando agora mesmo?
Refletir sobre os prováveis efeitos de uma maciça destruição do capital é um fascinante experimento mental. É algo que nos propicia valorosas constatações sobre a natureza humana e a fragilidade de nossa atual civilização. Não importa se a destruição do capital ocorrerá por meio de uma repentina hecatombe nuclear ou por meio de um lento e gradual esgotamento do capital acumulado no passado. Se os meios de produção forem destruídos, ou simplesmente não forem mantidos, é certo que a humanidade estará em um inexorável caminho rumo à fome e à predação.
O que nos impede de estarmos recorrendo ao canibalismo hoje mesmo? Quanto tempo levaria para que as pessoas em nossa civilização recorressem a brutais atos de predação na eventualidade de um desastre catastrófico? Quanto tempo até vermos as pessoas começarem a caçar, manter em cativeiro e se alimentar de outros humanos?
Há duas razões essencialmente comportamentais que impedem que os atuais humanos se tratem de maneira fragorosamente predatória. Uma razão é moral: há uma ampla aceitação de que, em nossas atuais circunstâncias, é errado e maléfico escravizar e se alimentar de outras pessoas. A outra é contextual: o capital acumulado de nossa civilização é suficiente para garantir que nós simplesmente não necessitemos de nos alimentarmos de outras pessoas — já temos comida abundante à nossa disposição.
(Uma outra razão que poderia ser mencionada é resultante dessas duas anteriores: tememos a punição que nos seria imposta por nos alimentarmos de outras pessoas. No entanto, esta é uma preocupação ínfima em nossa atual civilização e praticamente inexiste na mente da maioria das pessoas. A esmagadora maioria das pessoas evitaria o canibalismo sob as atuais circunstâncias independentemente de se elas fossem ou não punidas por tal ato, simplesmente porque elas não querem ou não necessitam incorrer neste tipo de depravação. Mencionamos esta motivação apenas para explicar que ela não está presente na maioria das pessoas.)
Estas duas fontes de comportamento civilizado — moral e contextual — não são independentes uma da outra. Nossa visão moral a respeito da escravidão e do canibalismo foi formada dentro do contexto de uma sociedade próspera na qual estas atividades não são necessárias para suprir nossas necessidades — ou seja, o atual contexto em que vivemos afeta nossa moralidade. Similarmente, o fato de não termos necessidade por este tipo de comida é por si só resultado da acumulação de capital gerada em decorrência de termos um sistema ordenado de produção erigido sobre regras morais — ou seja, nosso sistema moral afeta nossas atividades, as quais afetam o contexto em que vivemos.
Embora a primeira conexão seja amplamente apreciada, a segunda não é tão bem compreendida, e várias pessoas são propensas a tratar os frutos da civilização como sendo coisas que simplesmente surgiram do nada (ou como resultado da ciência e da tecnologia, as quais também teriam surgiram do nada), não necessitando de quaisquer princípios morais particulares para sustentá-las.
O fato de que o comportamento das pessoas vai depender de fundações morais totalmente relacionadas ao contexto em que vivemos é, por si só, um pensamento apavorante — muito embora as pessoas hoje pensem que o canibalismo é algo abominável, coloque-as vivendo por alguns meses em um mundo moribundo e pós-apocalíptico e veja se elas não irão mudar de ideia.
Sim, os princípios morais que alicerçam nossa atual civilização são extremamente frágeis, e é justamente a acumulação de capital e a consequente existência de meios de produção o que nos impede de mergulharmos na barbárie.
3. Ordem moral? Que ordem moral?
Se há uma forte conexão entre ausência de capital e ausência de ordem moral, e se o capital é de extrema importância para a vida civilizada, então qual é a ordem moral necessária para se acumular e preservar capital?
Para responder a isso, temos de entender que capital é algo formado e preservado por esforços produtivos que visam a uma recompensa futura. Por sua própria natureza, a acumulação de capital é uma atividade que requer uma abstenção de consumo no presente, abstenção esta que permitirá uma acumulação de poupança, a qual, por sua vez, possibilitará o aumento da produtividade no futuro. (Mais detalhes sobre este processo aqui). Para que este equilíbrio de trocas seja vantajoso, é necessária a existência de direitos de propriedade que funcionem como "fronteiras delimitadoras da ordem" em nossa interação com outras pessoas. É isto que nos permite acumular capital e evitar a barbárie. É isto que nos permite poupar para o futuro tendo a garantia de que colheremos alguma recompensa, em vez de apenas vermos nossos esforços sendo esbulhados por saqueadores e assassinos.
A ordem moral adequada para a vida civilizada é aquela que permita a ação cooperativa de indivíduos que almejam ganhos mútuos, mas que também impeça a coerção. Sempre que esta ordem moral foi praticada, ela permitiu ao homem construir capital e desenvolver e aprimorar a vida civilizada. Sempre que ela foi violada, surgiram impedimentos à acumulação de capital e houve até mesmo uma rematada destruição de capital.
4. Capital, ordem moral e sobrevivência humana
Se o homem perder todo o capital acumulado pela civilização, não haverá meios de produção. Consequentemente, sua própria vida estará em risco. Em situações assim, toda a ordem moral que sustenta uma civilização tende a se esfacelar.
E por que, afinal, estou insistindo neste ponto? Porque o mundo se encontra hoje em um gradual e contínuo processo de repúdio da ordem moral que sustenta o processo de acumulação de capital. Percebe-se em todos os cantos do globo uma temerária desconsideração da parte de várias pessoas por qualquer elo entre uma ordem moral objetiva baseada na conduta cooperativa e a acumulação e preservação de capital. São vários os indivíduos que creem que a acumulação e preservação do capital necessário para sustentar nossa atual abundância é algo que pode ser perfeitamente separada de toda e qualquer ordem moral.
Aqueles que se preocupam com a "distribuição" da riqueza acumulada no mundo representam uma força imprudente que está corroendo aos poucos as fundações da ordem civilizada. Que eles façam isso sob a pretensão de estarem atuando pelo bem dos pobres e oprimidos apenas mostra o quão grande é sua ingenuidade e sua desconsideração pela natureza do homem quando este perde sua civilização. O problema com esta situação não é meramente o perigo de esgotamento do capital físico, mas sim algo bem mais profundo e mais total: trata-se de uma deterioração moral que está gradualmente solapando a capacidade das pessoas de produzir e sustentar a produção. Cada medida coerciva defendida e aprovada por estas pessoas interfere na ordem moral da propriedade privada e nas transações voluntárias e cooperativas. Isso, por sua vez, ajuda a solapar a acumulação de capital, debilitando os meios de produção e afetando toda a vida civilizada que eles sustentam.
Solapar a acumulação de capital e, consequentemente, exaurir os meios de produção não é uma política que trará resultados bonitos. Tampouco se trata de uma política compassiva que trará benefícios aos pobres e oprimidos. Ao contrário, eles são os que mais irão sofrer.
Há uma forte conexão entre capital e ordem moral que jamais deve ser ignorada. Em suas raízes, os seres humanos são animais; e, como os outros animais, temos uma hierarquia de necessidades a serem satisfeitas. Não obstante nossa capacidade de raciocinar e ponderar sobre nossa própria conduta, nosso modo de comportamento sempre irá refletir a necessidade de satisfazer estas carências de alguma forma. Em nossa atual civilização, em meio a toda a sua abundância, a ideia de escravizar e canibalizar outras pessoas (inclusive crianças e bebês) é horrenda e revoltante, mas trata-se de uma realidade da natureza humana o fato de que isso pode vir a ocorrer sob circunstâncias terríveis e urgentes. O que nos protege deste resultado é o capital acumulado no passado e nossa capacidade de proteger este capital ao formularmos uma adequada ordem moral para conduzir nossas ações. Se formos negligentes quanto ao elo entre ordem moral e acumulação de capital, estaremos implorando pelo desastre.
Quando uma pessoa afirmar com desenvoltura que regras morais são apenas julgamentos subjetivos, ou que elas são algo que transcendem preocupações triviais com relação a bens materiais, pergunte a si mesmo aonde este tipo de posição tende a levar. Se o homem adotar esta visão em larga escala, você acha que ele ainda existirá daqui a mil anos?
Ben O'Neill é professor de estatística na Univesidade New South Wales, em Canberra, Austrália. Já foi também advogado e conselheiro político. Atualmente é membro do Independent Institute, onde ganhou em 2009 o prêmio Sir John Templeton de competição de ensaios.

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