Instituto alemão publica nova edição do polêmico "Mein Kampf", de Hitler
Felix Bohr e Steffen Winter - Der Spiegel
Adolf Hitler
O polêmico “Mein Kampf”, de Hitler, há muito é uma zona proibida para as editoras alemãs. Mas um instituto histórico de Munique agora está publicando a primeira edição acadêmica do livro desde a Segunda Guerra Mundial. Em uma entrevista para a “Spiegel”, o chefe do projeto, Christian Hartmann, discute o motivo de ser tão controverso quanto necessário.
Spiegel: Com 12 milhões de cópias, o polêmico “Mein Kampf” de Hitler figura entre os maiores best sellers do mundo. O texto também está disponível gratuitamente on-line. O que o senhor espera conseguir publicando uma edição acadêmica comentada?
Hartmann: Nós nos vemos como uma espécie de equipe antibomba. “Mein Kampf” é uma velha peça de artilharia enferrujada e nós estamos removendo o detonador. A ideia é desarmar o livro com uma nova introdução e especialmente por meio de um meticuloso comentário acadêmico. Isso remove o valor simbólico do livro e o torna essencialmente o que é: um registro histórico e nada mais.
Spiegel: Wolfgang Benz, o historiador e ex-chefe do Centro para Pesquisa do Antissemitismo (ZfA) da Universidade Técnica de Berlim, acredita que essa versão comentada é desnecessária, porque ele considera o livro de Hitler como contendo nada mais que “tiradas pessoais, cheias de ódio, sem qualquer entendimento adicional”.
Hartmann: Eu vejo de modo completamente diferente. Este livro é de importância chave para o entendimento das políticas de Hitler. Nele, ele faz um balanço de sua situação após uma vida que tinha sido bastante agitada até aquela altura. A leitura do livro dá pouco apoio à teoria de um ditador fraco. Na verdade, é perturbador ver quão precisamente Hitler implantou nos anos posteriores o que escreveu aqui.
Spiegel: O senhor acha que é essencial os alemães lerem isto agora, 67 anos após o fim da guerra?
Hartmann: Nós queremos dar início a um debate intelectual. Ao fazê-lo, não estamos apenas confrontando a sociedade com informação bruta, como alguns fazem. Nós apontamos de onde vieram as ideias de Hitler, quanta verdade elas contêm ou não, qual a importância delas para as ideologias e políticas dos nazistas. É revelador, por exemplo, comparar as teorias raciais de Hitler com as descobertas científicas da genética humana.
Spiegel: O Estado da Baviera mantém os direitos autorais de “Mein Kampf” desde o final da Segunda Guerra Mundial e, apesar de o livro não ser oficialmente proibido na Alemanha, a Baviera não permitiu sua publicação desde então. Todavia, qualquer interessado em ler o texto original pode simplesmente baixá-lo de servidores em outros países ou comprá-lo em um sebo de livros. Quão perigoso é esse livro hoje?
Hartmann: Partes dele são bastante perigosas, mesmo que apenas por seu antissemitismo delirante. E há muita agitação --contra o parlamentarismo, a monarquia, a classe média e a Igreja. Mesmo assim, essa obviamente não é a primeira vez que Hitler é editado. A publicação terá um impacto relativamente limitado.
Spiegel: Os muitos anos em que o livro esteve fora de catálogo na Alemanha pode provocar um grande interesse hoje?
Hartmann: Nas palavras de Wolf Biermann: “Nós queremos exatamente as coisas que somos proibidos de ter”. O livro tem, é claro, grande valor simbólico. Apesar disso, a força de ocupação americana sabia o que estava fazendo quando proibiu esse livro. Naquela época, era algo totalmente sensível de ser feito.
Spiegel: Mesmo que milhões de alemães já o tivessem em suas estantes?
Hartmann: Mas eles sabiam que não podiam deixar “Mein Kampf” circulando livremente. Aquela geração era altamente suscetível a essa linguagem e retórica. A situação é completamente diferente hoje.
Spiegel: Uma parte de “Mein Kampf” diz: “Exemplos do Ovo de Colombo estão à nossa volta às centenas de milhares; mas observadores como Colombo são raros”. Como tamanha tolice conseguiu ser tão bem-sucedida?Hartmann: Hitler foi autodidata e, falando estilisticamente, o livro é bastante falho. Sua atmosfera é enfadonha, pesada e inferior. Mas ninguém deve subestimar a inteligência de Hitler, assim como a história do Nacional Socialismo sempre foi uma história de subestimação. O livro também contém observações inteligentes. E é um livro que foi ainda mais importante para seu autor do que para seus leitores. Foi onde Hitler desenvolveu a visão que posteriormente realizaria. Ele foi um revolucionário, um pensador programático e estadista, tudo em uma pessoa --o que, a propósito, é um fenômeno histórico raro.
Spiegel: Apesar de ter abandonado a escola, Hitler cita Schopenhauer e Goethe no livro. Ele o escreveu sozinho?
Hartmann: Ele provavelmente não teve assistência direta e aparentemente datilografou o manuscrito pessoalmente. Hitler também lia bastante, em grande parte fontes obscuras. Ele teve alguns poucos pensamentos originais; sua originalidade está na sua forma de combinar o que recolheu de sua leitura, dos escombros ideológicos dos séculos 19 e 20.
Spiegel: No final da Segunda Guerra Mundial, o livro tinha vendido 12 milhões de cópias. Os casais recebiam uma cópia gratuita quando se casavam. Mas muitas pessoas o leram de fato?
Hartmann: Essa questão permanece disputada até hoje. A geração mais velha de historiadores é mais cética nesse ponto, enquanto tentativas de pesquisa mais recentes para provar que as pessoas o leram usam números de venda e retiradas em bibliotecas. Eu não acredito nisso. Qualquer pessoa que pegar o livro percebe quão difícil e lenta é sua leitura. O leitor médio dificilmente leria mais que 30 páginas.
Spiegel: Importantes ideólogos do Partido Nazista, como Alfred Rosenberg e Joseph Goebbels, não deram muita atenção a “Mein Kampf” em seus próprios textos. Por que, então, o livro é considerado como tendo exercido um papel decisivo para o partido?
Hartmann: No início, todas as principais figuras do Partido Nazista tinham ideias diferentes sobre o que o Nacional Socialismo significava. No final, foi Hitler que prevaleceu. E esse livro contém seu programa, mais ou menos formulado abertamente. Não foi à toa que o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, disse posteriormente que esse livro, mais do que qualquer outro, merecia ter sido estudado mais cuidadosamente pelos políticos e líderes militares Aliados após a ascensão de Hitler ao poder.
Spiegel: O livro também foi traduzido para outras línguas a partir de 1933. Qual foi seu impacto no exterior?
Hartmann: Limitado. Os nazistas também alteraram ligeiramente essas edições. Por exemplo, os ataques ao grande arqui-inimigo da Alemanha foram atenuados na versão francesa do livro.
Spiegel: Além de sua edição acadêmica de “Mein Kampf”, também há planos para ensinar sobre o livro nas escolas. Isso provocou protestos da associação dos professores na Baviera, que diz que isso é como tentar proteger as crianças do alcoolismo permitindo que provem álcool. O senhor compartilha essas preocupações?
Hartmann: É um documento chave do Nacional Socialismo e, a partir dele, é possível aprender que distorções e mentiras Hitler usou. Tratar dessa história foi rotina nas escolas alemãs por anos. “Mein Kampf” não vai virar o ensino de cabeça para baixo.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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