segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O caso Pistorius
Lee Siegel - O Estado de S.Paulo
NEW JERSEY - A personalidade humana é insondável. Ler sobre o alegado assassinato por Oscar Pistorius de sua namorada, Reeva Steenkamp, me fez pensar nas velhas histórias, e nas velhas ideias. Pensei em Édipo, com sua ira terrível e seu - para ser generoso - tirocínio fraco, e em Aquiles, com seu orgulho, suas pirraças e sua picuinha infantil. E em Heráclito, que disse que a vida era um rio, um fluxo constante de mudança, sem lugar de repouso ou contenção.
Pelo que aprendemos com a experiência, estamos acostumados a pensar na vida em termos de histórias com começo, meio e fim. De tudo que sabíamos, Pistorius passara pelo suplício terrível de seus primeiros anos, pela angústia da disputa, pelo final feliz da conquista. Nascido com uma doença que tornou necessária a amputação de suas pernas antes de completar 1 ano, ele se tornou um dos atletas mais celebrados do mundo. Mas, como os heróis da Antiguidade, seu caráter e sua psique seguiram fluindo, sem lugar de repouso nem contenção.
Tirante o próprio Pistorius, ninguém jamais saberá o que ocorreu na noite na qual é acusado de ter matado Steenkamp. E talvez ele a tenha confundido com um intruso, como alega - por mais improvável que soe, ao menos a esta altura. E talvez os investigadores da polícia tenham sido incompetentes, ou até mal-intencionados. Mas de todos os detalhes sobre a vida de Pistorius que estão aflorando agora, parece quase impossível existir uma explicação tão simples assim para os acontecimentos daquela noite.
Como poderíamos ter sido tão insensíveis à condição humana para pensar que esse homem poderia perder ambas as pernas quando criança, prender com correias milagrosas lâminas de carbono e correr para a felicidade e a imortalidade? Por que as revelações de ódio, medo e violência de Pistorius nos surpreendem? Nossas vidas são bastante enigmáticas, mesmo para nós. Que perplexidade não deve ter martelado dentro da cabeça desse homem que foi privado de tanta coisa quase ao nascer e foi em frente para receber mais do que todo mortal poderia esperar?
À luz de sua condição, os detalhes que surgem do comportamento aberrante de Pistorius nos anos anteriores ao assassinato parecem normais, e sua celebridade parece uma aberração. Disseram que ele mantinha diversas armas em casa - um bastão de críquete, revólver, uma metralhadora - para afugentar intrusos. Na violenta África do Sul, isso era comum, mas no caso de um homem que, sem suas lâminas de carbono ficava indefeso, parece o ápice da racionalidade. Seu temperamento, as ameaças de violência contra pessoas, as bravatas insolentes sobre a sua boa pontaria - tudo isso parece o contrapeso racional de todos os medos e demônios que certamente o assombraram quando ele viu, com o que deve ter sido uma clareza agônica, o abismo entre suas reais limitações físicas e o que as lâminas milagrosas e sua vontade de ferro extraíram dele.
Por trágico que tenha sido o desfecho - especialmente para a pobre Steenkamp -, a história de Pistorius, aconteça o que acontecer no tribunal, tem todos os contornos de um conto de fadas. Ele é ou o herói que fica impotente sem a mágica que lhe foi conferida ou o vilão que fica impotente sem a mágica que roubou. Em ambos os casos, a distância entre o ser real e o ser amplificado é vertiginosa.
Não estou dizendo que, ao aceitar os poderes mágicos de suas lâminas de carbono, Pistorius transgrediu suas limitações. Ao contrário. Sua história é linda e inspiradora. Significa que pessoas com deficiências possuem a dignidade de seus semelhantes mortais mais afortunados. E que a sociedade não deve fechar as portas para ninguém com base em uma deficiência que não tem nada a ver com a maneira como a pessoa pode realizar um trabalho.
Mas tão logo as pessoas aceitaram o triunfo de Pistorius, elas se esqueceram do homem por trás do exemplo. Essa cegueira deve ter criado uma constelação de pessoas em torno dele que submergiram sua humanidade falível. Advogados, treinadores, agentes, executivos de empresas de artigos esportivos que pagaram por sua imagem - quando essas figuras começaram a ganhar dinheiro com as façanhas de Pistorius, era do seu interesse ignorar, ou até encobrir, o lado obscuro dele, que continuou avançando sem parar. Alguém estaria interessado no Pistorius que ficava deitado em sua cama à noite, as pernas amputadas, as lâminas de carbono encostadas na parede? Eles estavam tão interessados em Pistorius quanto em enfrentar a questão se suas lâminas mágicas não só o colocavam em igualdade de condições com outros corredores, como lhe conferiam uma vantagem equivalente aos mais poderosos esteroides.
O que aconteceu naquela noite? Quer tenha atirado pensando ser Steenkamp um intruso ou a tenha matado deliberadamente, ele agiu movido por um daqueles medos primordiais que poucos suportam, mas com o qual ele conviveu todos os dias. Isso não é uma desculpa, caso tenha de fato assassinado Steenkamp. Nesse caso, deve ser processado com base na mais fria letra da lei. Mas esse medo imensurável, insondável, é uma explicação para o quê e quem Pistorius fundamentalmente é - uma explicação com a qual a sociedade civilizada se sente menos à vontade do que com a acusação pura e simples de assassinato premeditado.

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