Miguel Mora - Le Monde
Pascal Guyot/AFP
O presidente da França, Francois Hollande
François Hollande é um mestre da retórica, um pugilista do verbo. Quase nunca diz o que não quer dizer e muitas vezes diz o que ninguém quer ouvir no meio de uma frase de aspecto inocente. No sábado, sem ir mais longe, enterrou metaforicamente Nicolas Sarkozy durante a tradicional visita à Feira de Agricultura. Um menino lhe perguntou sobre seu antecessor e Hollande, sem duvidar um segundo e com seu melhor sorriso, soltou: "Você nunca mais o verá".
A piada, que correu como pólvora pela internet, revela uma verdade muito séria. O projeto político de Hollande é ser presidente durante dois mandatos, ou dez anos. E talvez por isso nesse mesmo dia nem sequer se alterou quando lhe perguntaram sobre as recomendações da Comissão Europeia e por suas más previsões econômicas, que obrigarão a França a fazer novos cortes e a mexer nas aposentadorias para manter a meta de déficit de 3% em 2014 e, em troca, receber 12 meses de perdão de Bruxelas.
Com sua calma proverbial, Hollande não saiu do roteiro. Explicou que o objetivo de seu governo continua sendo o mesmo, "conseguir o equilíbrio das finanças públicas no final do quinquênio", e matizou que as previsões da Comissão "levam em conta a paralisação que ocorreu na Europa, isto é, a recessão". "E nesse contexto a França vai menos mal que outros", acrescentou.
Vendo a garrafa meio cheia, lembrou que Bruxelas reconhece que a França fez "um esforço considerável" e afirmou que não será preciso acrescentar austeridade em 2013 porque "já se pediu muito aos contribuintes e inclusive ao governo". Elegante ao recolher, sem dizê-lo de forma explícita, a luva do ano extra concedido na sexta-feira pelo comissário de Assuntos Econômicos, Olli Rehn, para cumprir o déficit, Hollande anunciou que o "grande esforço" será feito em 2014, quando será preciso "economizar em todos os orçamentos: o do Estado, o dos organismos locais e o da seguridade social [leia-se aposentadorias]".
Uma vez lançada a mensagem que ninguém se atreve a dar (as aposentadorias!), o presidente recorreu à promessa que melhor encarna, a seu mantra favorito, à palavra associada com sua chegada ao poder (e à Europa): crescimento. "Mas chegaremos mais facilmente [a cumprir o déficit] se tivermos crescimento", disse. "E para isso a França continuará investindo, especialmente através do Banco Público de Investimentos, dos fundos obtidos com o aumento da retenção nas cadernetas de poupança e com os fundos da Caixa de Depósitos."
A realidade, entretanto, mostra que Hollande pregou o final da austeridade e a chegada do desenvolvimento, mas por enquanto foi incapaz de corrigir um estancamento que já dura uma longa década. Paris põe a culpa na Alemanha, que se nega a estimular a demanda interna e a reduzir a excessiva força do euro, apesar de seus próprios números serem cada vez piores. Mas o caso é que a França e a Europa continuam tão atônicas e deprimidas quanto em maio passado, quando o presidente normal chegou ao Eliseu. E as previsões da Comissão não anunciam exatamente champanhe: Paris não crescerá mais que 0,1% este ano, e 1,2% em 2014, respectivamente 7 e 8 décimos a menos do que o governo esperava.
Hollande, otimista irredutível, acredita que poderá desmentir as previsões, ou pelo menos continua dizendo isso, mas quase ninguém na França o vê mais como o homem-providência, e muito menos que seja possível, como prometeu há pouco, reverter a curva do desemprego no final de 2013. O grande paradoxo é que enquanto Berlim e Bruxelas não confiam na vontade reformista e no rigor de Hollande, em casa a esquerda e os sindicatos o criticam cada vez mais duramente pelo contrário, e o acusam de seguir rigidamente os ditames de Angela Merkel e de ser o paladino emboscado da austeridade.
No domingo, em uma entrevista a "Le Parisien", o copresidente da Frente de Esquerdas, Jean-Luc Mélenchon, atacou a ausência de uma resposta do mais alto nível à carta ofensiva enviada pelo presidente da Titan, Maurice Taylor, ao ministro da Indústria, Arnaud Montebourg, na qual o empresário ultraconservador afirmou, entre outras gentilezas, que não investirá um dólar na França porque "os sindicatos loucos e comunistas" e seu governo consideram normal "trabalhar três horas por dia e parar uma para comer".
Diante de um ataque dessa gravidade, diz Mélenchon, "é o primeiro-ministro quem deve dar um passo à frente. Seu silêncio é desolador". Mas nem só Jean-Marc Ayrault é culpado de "acariciar os patrões das multinacionais" para ser "injuriado na primeira ocasião". Segundo o tribuno Mélenchon, também "Hollande bate recordes de hipocrisia, ao fazer discursos sobre a recuperação enquanto organiza a austeridade. De fato, é o melhor aluno da classe da senhora Merkel, que decidiu pôr todo mundo a trabalhar".
Paladino do crescimento ou simples mandado de Berlim? Duas mulheres ajudam a resolver a equação. Para Alexandrine Bouilhet, colunista econômica de "Le Figaro", a situação atual da França se parece muito com a das últimas décadas. Bruxelas e Berlim deram a Paris "o mesmo tratamento de favor que recebe há décadas", embora isto implique que Bruxelas "perde um pouco mais sua credibilidade". A razão: "A França é a segunda economia da zona do euro e em períodos de crise é um país tão sistêmico quanto um grande banco". Segundo Bouilhet, "se chamar demais a atenção para nossas fragilidades econômicas, Bruxelas poderia enlouquecer os mercados. E isto poria em perigo toda a zona do euro, incluindo a Alemanha, que sabe que não lhe interessa marcar seu vizinho com tinta vermelha".
Não menos aguda, Françoise Fressoz, editorialista e blogueira de "Le Monde", escreveu que na realidade o paradoxo de Hollande é o mesmo que viveu Sarkozy. "A doença francesa é esta: o rigor esconde seu nome, parece uma doença vergonhosa. O resultado é que cada vez mais as reformas também parecem vergonhosas, e além disso impostas do exterior."
Mas a França, acrescenta Fressoz, "pratica o rigor. Desde que foi eleito, Hollande sonha em ser o Senhor Crescimento da Europa. Ele luta contra a austeridade sem fim, se coloca do lado dos países sofredores, resiste como pode no cenário europeu à lixa de Angela Merkel e David Cameron. Mas os fatos são teimosos. E na medida em que passam os meses o governo aperta mais os parafusos, cortando os gastos, reduzindo o ritmo de vida dos organismos locais, atacando o Estado providência. Aposentadorias, seguro-desemprego, isenções para as famílias, tudo passa, e por trás está a mão invisível de Bruxelas".
A conclusão é uma piada, embora seja duvidoso que agrade a Hollande: "Estranha concepção da soberania nacional, que reflete a incapacidade francesa de ver a realidade de frente, de pensar em longo prazo e de construir a união em torno da recuperação. (...) Só resta um caminho íngreme que não diz seu nome. Rigor? Não, isso jamais!"
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
O presidente da França, Francois Hollande
François Hollande é um mestre da retórica, um pugilista do verbo. Quase nunca diz o que não quer dizer e muitas vezes diz o que ninguém quer ouvir no meio de uma frase de aspecto inocente. No sábado, sem ir mais longe, enterrou metaforicamente Nicolas Sarkozy durante a tradicional visita à Feira de Agricultura. Um menino lhe perguntou sobre seu antecessor e Hollande, sem duvidar um segundo e com seu melhor sorriso, soltou: "Você nunca mais o verá".
A piada, que correu como pólvora pela internet, revela uma verdade muito séria. O projeto político de Hollande é ser presidente durante dois mandatos, ou dez anos. E talvez por isso nesse mesmo dia nem sequer se alterou quando lhe perguntaram sobre as recomendações da Comissão Europeia e por suas más previsões econômicas, que obrigarão a França a fazer novos cortes e a mexer nas aposentadorias para manter a meta de déficit de 3% em 2014 e, em troca, receber 12 meses de perdão de Bruxelas.
Com sua calma proverbial, Hollande não saiu do roteiro. Explicou que o objetivo de seu governo continua sendo o mesmo, "conseguir o equilíbrio das finanças públicas no final do quinquênio", e matizou que as previsões da Comissão "levam em conta a paralisação que ocorreu na Europa, isto é, a recessão". "E nesse contexto a França vai menos mal que outros", acrescentou.
Vendo a garrafa meio cheia, lembrou que Bruxelas reconhece que a França fez "um esforço considerável" e afirmou que não será preciso acrescentar austeridade em 2013 porque "já se pediu muito aos contribuintes e inclusive ao governo". Elegante ao recolher, sem dizê-lo de forma explícita, a luva do ano extra concedido na sexta-feira pelo comissário de Assuntos Econômicos, Olli Rehn, para cumprir o déficit, Hollande anunciou que o "grande esforço" será feito em 2014, quando será preciso "economizar em todos os orçamentos: o do Estado, o dos organismos locais e o da seguridade social [leia-se aposentadorias]".
Uma vez lançada a mensagem que ninguém se atreve a dar (as aposentadorias!), o presidente recorreu à promessa que melhor encarna, a seu mantra favorito, à palavra associada com sua chegada ao poder (e à Europa): crescimento. "Mas chegaremos mais facilmente [a cumprir o déficit] se tivermos crescimento", disse. "E para isso a França continuará investindo, especialmente através do Banco Público de Investimentos, dos fundos obtidos com o aumento da retenção nas cadernetas de poupança e com os fundos da Caixa de Depósitos."
A realidade, entretanto, mostra que Hollande pregou o final da austeridade e a chegada do desenvolvimento, mas por enquanto foi incapaz de corrigir um estancamento que já dura uma longa década. Paris põe a culpa na Alemanha, que se nega a estimular a demanda interna e a reduzir a excessiva força do euro, apesar de seus próprios números serem cada vez piores. Mas o caso é que a França e a Europa continuam tão atônicas e deprimidas quanto em maio passado, quando o presidente normal chegou ao Eliseu. E as previsões da Comissão não anunciam exatamente champanhe: Paris não crescerá mais que 0,1% este ano, e 1,2% em 2014, respectivamente 7 e 8 décimos a menos do que o governo esperava.
Hollande, otimista irredutível, acredita que poderá desmentir as previsões, ou pelo menos continua dizendo isso, mas quase ninguém na França o vê mais como o homem-providência, e muito menos que seja possível, como prometeu há pouco, reverter a curva do desemprego no final de 2013. O grande paradoxo é que enquanto Berlim e Bruxelas não confiam na vontade reformista e no rigor de Hollande, em casa a esquerda e os sindicatos o criticam cada vez mais duramente pelo contrário, e o acusam de seguir rigidamente os ditames de Angela Merkel e de ser o paladino emboscado da austeridade.
No domingo, em uma entrevista a "Le Parisien", o copresidente da Frente de Esquerdas, Jean-Luc Mélenchon, atacou a ausência de uma resposta do mais alto nível à carta ofensiva enviada pelo presidente da Titan, Maurice Taylor, ao ministro da Indústria, Arnaud Montebourg, na qual o empresário ultraconservador afirmou, entre outras gentilezas, que não investirá um dólar na França porque "os sindicatos loucos e comunistas" e seu governo consideram normal "trabalhar três horas por dia e parar uma para comer".
Diante de um ataque dessa gravidade, diz Mélenchon, "é o primeiro-ministro quem deve dar um passo à frente. Seu silêncio é desolador". Mas nem só Jean-Marc Ayrault é culpado de "acariciar os patrões das multinacionais" para ser "injuriado na primeira ocasião". Segundo o tribuno Mélenchon, também "Hollande bate recordes de hipocrisia, ao fazer discursos sobre a recuperação enquanto organiza a austeridade. De fato, é o melhor aluno da classe da senhora Merkel, que decidiu pôr todo mundo a trabalhar".
Paladino do crescimento ou simples mandado de Berlim? Duas mulheres ajudam a resolver a equação. Para Alexandrine Bouilhet, colunista econômica de "Le Figaro", a situação atual da França se parece muito com a das últimas décadas. Bruxelas e Berlim deram a Paris "o mesmo tratamento de favor que recebe há décadas", embora isto implique que Bruxelas "perde um pouco mais sua credibilidade". A razão: "A França é a segunda economia da zona do euro e em períodos de crise é um país tão sistêmico quanto um grande banco". Segundo Bouilhet, "se chamar demais a atenção para nossas fragilidades econômicas, Bruxelas poderia enlouquecer os mercados. E isto poria em perigo toda a zona do euro, incluindo a Alemanha, que sabe que não lhe interessa marcar seu vizinho com tinta vermelha".
Não menos aguda, Françoise Fressoz, editorialista e blogueira de "Le Monde", escreveu que na realidade o paradoxo de Hollande é o mesmo que viveu Sarkozy. "A doença francesa é esta: o rigor esconde seu nome, parece uma doença vergonhosa. O resultado é que cada vez mais as reformas também parecem vergonhosas, e além disso impostas do exterior."
Mas a França, acrescenta Fressoz, "pratica o rigor. Desde que foi eleito, Hollande sonha em ser o Senhor Crescimento da Europa. Ele luta contra a austeridade sem fim, se coloca do lado dos países sofredores, resiste como pode no cenário europeu à lixa de Angela Merkel e David Cameron. Mas os fatos são teimosos. E na medida em que passam os meses o governo aperta mais os parafusos, cortando os gastos, reduzindo o ritmo de vida dos organismos locais, atacando o Estado providência. Aposentadorias, seguro-desemprego, isenções para as famílias, tudo passa, e por trás está a mão invisível de Bruxelas".
A conclusão é uma piada, embora seja duvidoso que agrade a Hollande: "Estranha concepção da soberania nacional, que reflete a incapacidade francesa de ver a realidade de frente, de pensar em longo prazo e de construir a união em torno da recuperação. (...) Só resta um caminho íngreme que não diz seu nome. Rigor? Não, isso jamais!"
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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