Choques culturais
Roberto Pompeu de Toledo - VEJA
Um mal-entendido, causado por diferenças culturais.
Com esse argumento, a Embaixada do Irã em Brasília saiu em defesa do diplomata Hekmatollah Ghorbani, acusado de tocar nas partes íntimas de meninas de 9 a 14 anos na piscina de um clube da capital federal.
“Diferenças culturais” – eis um artigo de ampla utilidade, no mundo contemporâneo. Pode ser invocado com um olho na embromação e outro no cinismo, como no caso do iraniano.
Outras vezes pode não ser invocado, mas nem precisaria – grita nas entrelinhas. Tivemos exemplos desses e de outros tipos nos últimos dias. Até de um em que era só uma piada de bufão.
O caso do iraniano é sério, mas a nota da embaixada em defesa do acusado, em que a barafunda dos argumentos vinha embalada em português trôpego, é cômica.
Um trecho: “Sendo nas demais sociedades, essas virtudes e valores relativos podem provocar dificuldades e uma série de incompreensão para as pessoas que estão vivendo num ambiente alienígena às suas características culturais”.
Ora, foi para ouvir semelhantes disparates que os ministros e diplomatas brasileiros aprenderam com tanto custo a pronunciar a palavra AH-MA-DI-NE-JAD? Não foi, e então o governo iraniano, agora por um porta-voz em Teerã, e em correto idioma farsi, tratou de recuar, afirmando que o caso será investigado. Para começar, disse o porta-voz, o diplomata não deveria estar numa piscina frequentada também por mulheres.
Conclusão: para o governo iraniano, o pobre diplomata mergulhou no choque cultural da piscina proibida e sucumbiu.
Diferença cultural que grita nas entrelinhas é a que aparece em dois casos protagonizados por funcionários americanos, um em Cartagena, na Colômbia, o outro em Brasília, ambos envolvendo prostitutas locais.
Em Cartagena, agentes do serviço secreto, destacados para proteger o presidente Barack Obama durante a Cúpula das Américas, contrataram moças para uma festinha. O caso veio à luz quando uma delas recorreu à polícia para queixar-se de que não fora paga conforme o combinado.
Em Brasília, quatro funcionários da embaixada americana, entre os quais três marines, tiveram sua noite de embalo prejudicada por um desentendimento que terminou em agressão a uma delas. O caso ocorreu em dezembro, mas permaneceu na obscuridade até a semana passada, quando foi comentado pelo secretário de Defesa americano, Leon Panetta, durante visita a Brasília.
A “diferença cultural” em questão é produto do clique que se dá na cabeça de americanos como os envolvidos nos dois incidentes quando cruzam a fronteira do Rio Grande.
A América Latina os liberta.
Ressalve-se, em favor dos americanos brutal diferença, com relação ao caso iraniano, de que se envolveram com mulheres adultas, e para fruição de sexo consentido. Ressalve-se, em favor do governo americano, que, ao contrário de proteger seus agentes, os puniu. Sobra ainda assim o substrato do clique na cabeça dos implicados. Em Cartagena como em Brasília, eles estavam em missão governamental. Mesmo assim, não podiam perder a oportunidade de provar as calientes latinas. Engajaram-se na prática do turismo sexual oficial.
A piada de bufão nos veio do inesgotável Silvio Berlusconi, o ex-primeiro-ministro da Itália. A última das revelações sobre sua movimentada vida social dá coma de festas animadas por strip-teases que começavam com as moças vestidas de enfermeira, de freira ou de policial. Houve até uma que se apresentou com uma máscara de Ronaldinho Gaúcho.
Que tem a dizer o Cavaliere sobre isso? Calmo, condescendente, em nenhum momento ele pronunciou as palavras “diferença cultural”, mas forneceu explicações sobre as protagonistas das festas. Elas vêm do show business, explicou, paciente; por isso, são “naturalmente exibicionistas”. Não era nenhuma violência, portanto, fazê-las desfilar daquele jeito. Ao contrário, divertiam-se com tais “jogos burlescos”.
Quase ao mesmo tempo em que Berlusconi dava suas explicações, este ás do estranhamento cultural que é o presidente da África do Sul Jacob Zuma se casava, em sua aldeia natal, pela sexta vez. Uma das mulheres já morreu; de outra, divorciou-se. Mesmo assim, sobra-lhe um time respeitável de esposas, agora de quatro integrantes.
Ao contrário de Berlusconi, ele não se envolvia em nenhuma transgressão. A poligamia é aceita entre os zulus, sua nação, e tolerada, como singularidade cultural, pelas leis da África do Sul. Berlusconi pode ter sentido uma ponta de inveja. Ao celebrar o evento dentro dos rituais zulus, Zuma dançou embrulhado numa pele de leopardo. A ele é permitido dançar o bunga bunga em paz.
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