Senado quer fazer quiproquó com o acordo ortográfico
Ás vésperas de regras vigorarem de forma definitiva, senadores querem revisar acordo que unificou ortografia nos países de língua portuguesa
Thais Arbex - VEJA
Em dezembro deste ano, será decretado, definitivamente, o fim do trema. Nenhum qüiproquó, por mais generalizado que seja, será mais aceito com os dois pontos em cima da letra u. Nenhuma idéia, por mais esdrúxula que seja, terá acento agudo na letra e. Vôo e enjôo deixam para trás, de uma vez por todas, seus acentos circunflexos. E o alfabeto passará a ter 26 letras, ao incorporar as letras "k", "w" e "y".
As regras não são novas. Estão em vigor desde janeiro de 2009, quando o Brasil e todos os países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) - Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste - assinaram o acordo ortográfico. Os brasileiros tiveram quatro anos para se adequar às novas regras. Durante esse período, tanto a grafia anterior como a nova foram aceitas oficialmente. Mas a partir de 1º de janeiro de 2013, as regras antigas deixam de ter validade e passa a vigorar, então, a nova ortografia da Língua Portuguesa – cujas normas foram organizadas pela Academia Brasileira de Letras (ABL) na quinta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP).
No entanto, a confusão em torno do acordo ortográfico, elaborado para uniformizar a grafia das palavras dos países lusófonos, ou seja, os que têm o português como língua oficial, está longe do fim. E se depender do Senado Federal, o qüiproquó vai continuar. E carregando seu trema por muito mais tempo.
Acusação - Há um mês, os senadores Ana Amélia Lemos (PP-RS), Cristovam Buarque (PDT-DF), Cyro Miranda (PSDB-GO) e Paulo Bauer (PSDB-SC) promoveram uma audiência pública na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado para discutir a revisão da reforma ortográfica. Também participaram do debate os professores Pasquale Cipro Neto e Ernani Pimentel, idealizador do Movimento Acordar Melhor. Ele acusa a ABL de fazer alterações no texto do acordo ortográfico após a assinatura dos países membros da CPLP.
Segundo Pimentel, a Casa de Machado de Assis teria publicado na quinta edição do VOLP normas que não foram acordadas entre os oito países. “A ABL mexeu em vários pontos do acordo sem autorização. O que está sendo implantando é ilegal. O VOLP desrespeita e altera o texto original”, acusa Pimentel.
Autoridade máxima no Brasil quando o assunto é novo acordo ortográfico, o gramático e imortal Evanildo Bechara, afirma, no entanto, que as acusações “não condizem com a verdade”. De acordo com ele, que é autor da Moderna Gramática Portuguesa, a Academia Brasileira de Letras adaptou a quinta edição do VOLP “ao que ficou acertado no texto do acordo”.
“Em 2008, estávamos com a quarta edição do VOLP esgotada. Quando partimos para a quinta edição, estava em plena efervescência a discussão sobre a implantação do novo acordo. Por isso, acreditamos aqui na Academia que havia chegado o momento de implantarmos o acordo na quinta edição do VOLP”, diz.
Audiência Pública - Autora da requisição da audiência pública, a senadora Ana Amélia passou a defender a revisão das novas regras logo depois que foi procurada por Pimentel, em dezembro do ano passado. Foi ela quem sugeriu aos colegas que a Academia Brasileira de Letras fosse convidada para ir ao Senado explicar o novo acordo ortográfico. “Eu, assim como o professor Pimentel, defendo a redução e o aperfeiçoamento do acordo. E também queremos tratar disso de forma diplomática e política”, afirma.
Bechara, responsável pela produção da quinta edição do VOLP, com as novas regras da ortografia, foi de fato convidado a participar da discussão que aconteceu no dia 4 de abril. Mas diz que não pode comparecer à reunião por estar em um congresso fora do país que se estendeu até o dia 17 de abril. Nas palavras de Ana Amélia, no entanto, ao não comparecer à audiência, a ABL “mostrou falta de vontade de debater o assunto".
Bechara disse ao site de VEJA que pediu ao Senado para que a data do encontro fosse adiada, mas que seu pedido não foi atendido. “Logo que fui chamado a compor a mesa, informei ao Senado a impossibilidade de comparecer à reunião. Apresentei duas possibilidades: de a reunião ser transferida para outra data e a outra possibilidade de marcar uma nova reunião para eu prestar esclarecimentos aos senadores”, diz.
Como a data da audiência não foi alterada, assim que voltou ao Brasil, no dia 18 de abril, Bechara enviou uma carta ao Senado colocando-se à disposição dos senadores para ir à Brasília. O gramático pretende apresentar aos parlamentares um histórico do acordo. “Vou mostrar as sem-razões das críticas. Vamos fazer o histórico do acordo, onde e em quais fatos o acordo se baseia”, afirma Bechara.
Até agora, no entanto, o Senado não enviou resposta ao imortal.
Como surgiu o acordo - As regras do novo acordo estão prontas desde 1990, quando o texto foi elaborado e aprovado pelos representantes da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Naquele ano, o que se pretendeu fazer foi um acordo que unificaria a ortografia em todos os países de língua portuguesa. Até então, Portugal se regia pelo acordo de 1945 e o Brasil, pelo de 1943.
O texto de 1990 tratou apenas das divergências entre os acordos de 1945 e o de 1943. Tudo o que era comum nos dois sistemas não entrou em discussão na redação do novo acordo. “Porque se já era comum, já estava previamente acordado entre os dois países”, justifica Bechara.
“Começaram a dizer que a Academia inovou, que a Academia fugiu do acordo. Mas a pessoa que faz a crítica não entende que o acordo de 1990 é, em 90% dos casos, uma reedição do acordo português de 1945. Por isso, nós brasileiros tivemos que abrir mão de muitos mais fatos do que os portugueses”, afirma o imortal, que ocupa a cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras.
De fato, em números, as mudanças para os brasileiros são quase insignificantes: a norma escrita teve 0,43% de suas palavras mudadas. Em Portugal, 1,42%. Até julho de 2004, era preciso que todos os países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ratificassem as novas normas para que elas entrassem, de fato, em vigor. Mas um acordo feito naquele ano estabeleceu que pelo menos três países ratificassem os termos da proposta, o que ocorreu somente em 2006. O Congresso brasileiro aprovou as mudanças em 1995, seguido de Cabo Verde, em fevereiro de 2006, e São Tomé e Príncipe, em dezembro daquele mesmo ano.
De acordo com a Divisão de Promoção da Língua Portuguesa do Itamaraty, dos oito países membros da CPLP, apenas Angola e Moçambique ainda não ratificaram o acordo.
Os próximos passos do Senado - Agora, os senadores se articulam para criar, nos próximos dias, um grupo de trabalho na Comissão de Educação, Cultura e Esporte da Casa para acompanhar o assunto. A proposta do senador Cristovam Buarque é que o grupo seja misto, formado por senadores e deputados. “Para nós, ficou claro que existiu pressa na implantação do acordo. E precipitação sempre dá errado. Nosso objetivo é melhorar o acordo e não impedir que ele entre em vigor”, afirma.
Um dos objetivos dos parlamentares, de acordo com o senador Paulo Bauer, é realizar uma série de reuniões para que sejam esclarecidas as confusões em torno das novas normas. “Precisamos descobrir se os problemas têm soluções, se podemos fazer mudanças sem ferir o acordo e a nossa língua. Por enquanto, as novas regras estão afrontando a língua”, diz.
Mas, de acordo com a senadora Ana Amélia, o pedido de anulação do acordo não está descartado, já que a partir do próximo ano, nos livros didáticos, vestibulares e concursos públicos as novas normas passam a ser obrigatórias. “Podemos tomar uma posição mais firme em relação ao acordo, como propor o fim do acordo ou pedir o adiamento dele, para que não entre em vigor a partir de janeiro de 2013”.
Derrubar o acordo ortográfico, ressalte-se, seria jogar dinheiro público fora. Antes de decidir se seguirá por caminho tão radical, diz Ana Amélia, o Senado quer acompanhar como está a discussão a respeito do acordo nos outros países. Durante a audiência pública, além do adiamento da implantação do acordo, foi proposta também uma nova reunião internacional, com representantes da Comunidade de Países de Língua Portuguesa para todos os pontos do novo texto sejam rediscutidos.
O desacordo em Portugal - Portugal tem até dezembro de 2014 para concluir o processo de implantação da nova grafia. Mas lá o acordo ortográfico ainda enfrenta muita resistência. Tanto que os alunos portugueses só começaram a aprender as novas regras neste ano - três anos depois de as novas regras terem sido acordadas.
Apesar de se dizer a favor do acordo, o secretário de estado da Cultura do país, o escritor Francisco José Viegas, tem defendido mudanças no texto assinado em 2009. Em recente entrevista, ele afirmou que é preciso promover pequenas alterações pontuais, “sobre o que é pronúncia culta, pronúncia corrente e a sua correspondente ortografia”.
A controvérsia sobre o acordo voltou à tona em Portugal depois que o poeta Vasco Graça Moura, ao assumir, em fevereiro, o cargo de diretor do Centro Cultural de Belém - de uma das mais importantes instituições culturais do país, determinou que fosse suspensa a aplicação do acordo ortográfico nos serviços sob sua tutela. Circula também na internet uma petição para que o parlamento português vote o fim do acordo.
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