Champanhe antes da queda: manobra do piloto pode ter causado queda de avião na Indonésia
Matthias Schepp e Gerald Traufetter - Der Spiegel
Uma manobra temerária pelo piloto pode ter causado a queda do Sukhoi Superjet 100 na Indonésia, na semana passada. Eram grandes as esperanças de que o novo jato de passageiros poderia ressuscitar a indústria de aviação da Rússia, e o piloto quis fazer de tudo para assegurar o sucesso.
O Superjet tinha acabado de entrar no espaço aéreo da Indonésia em um voo de demonstração quando um passageiro seminu, segurando um tridente prateado reluzente, entrou na cabine do piloto. Sergey Dolya, um jornalista de viagem e blogueiro de aviação russo de 39 anos, estava sem camisa, tinha colocado uma longa barba branca e usava uma coroa feita de papel prateado.
Dolya tinha adotado o papel do deus Netuno ao norte de Jacarta, a capital indonésia. “Eu imitei uma cerimônia de travessia do equador 10 mil metros acima do nível do mar”, ele diz. “Geralmente apenas marinheiros fazem isso.”
O jornalista queria celebrar o fato de o Sukhoi SSJ 100 (“Superjet”) ter penetrado no Hemisfério Sul pela primeira vez. Todas as esperanças da indústria de aviação da Rússia estavam depositadas nesse jato de passageiros, projetado por uma empresa com 80 anos de história de fabricação de aviões militares.
O avião estava em uma turnê de demonstração com intenção de entrar no dinâmico mercado asiático. O presidente Nursultan Nazarbayev já tinha inspecionado o Superjet quando ele fez uma parada no Cazaquistão. Agora os russos esperavam impressionar compradores potenciais na Indonésia.
O humor a bordo era fantástico, e Dolya relata que havia champanhe. Na cabine, o copiloto tirou uma foto do falso Netuno com seu celular. Comissárias de bordo indonésias, usando salto alto e minissaia, posavam para fotos.
Um piloto equilibrado
Um dia depois, a tripulação russa de oito pessoas e todos os 37 passageiros do avião estavam mortos. Aparentemente, Alexander Yablontzev, o capitão do voo, se deixou contagiar pela empolgação geral durante o voo de demonstração da tarde de quarta-feira.
A rigor, dificilmente algum outro piloto estaria mais bem qualificado para assumir os controles do voo-teste em Jacarta do que o veterano de 57 anos. Amigos o descrevem como um piloto equilibrado. Ele já registrava mais de 10 mil horas de voo em mais de 80 tipos diferentes de aeronaves. E quando o Superjet fez seu voo inaugural em maio de 2008, Yablontzev foi o último piloto de teste a se sentar em sua cabine.
A fotógrafa russa Marina Lystseva igualmente não tinha nada de ruim a dizer sobre Yablontzev. A jovem amiga de Dolya e moradora de Moscou teve muita sorte: o único motivo para ela não estar no voo da tarde era porque já tinha tirado fotos suficientes no voo matinal. Ela conhecia o capitão Yablontzev há muito tempo e diz que ele amava o avião e “queria o sucesso do jato com todas as fibras de seu corpo”.
Há muito que sugere que foi precisamente isso que causou a morte dele e dos seus passageiros. De fato, a pressão para assegurar o sucesso da missão do Superjet era enorme. Em fevereiro, quando ele ainda era o primeiro-ministro da Rússia, o presidente Vladimir Putin assinou um programa de 43 bilhões de euros cuja meta declarada era ajudar a indústria de aviação de Moscou a conquistar 10% do mercado global de aviões de passageiros até 2025. Atualmente, sua fatia de mercado é de menos de 1%.
Até o momento, a maioria das vendas do Superjet da Sukhoi foi para a Aeroflot, a companhia aérea estatal russa, a um preço com desconto de apenas 15 milhões de euros cada. Mas o Kremlin vê o SSJ 100 como um futuro concorrente global de aviões duas vezes mais caros, especialmente o Bombardier CRJ do Canadá e do Embraer 190 do Brasil.
O show aéreo mais espetacular possível
Muitos especialistas duvidam que o Superjet consiga estabelecer uma posição no mercado global altamente competitivo, e o desastre embaraçoso na Indonésia complica ainda mais suas perspectivas. Por ora, o importante será determinar a causa do acidente. Ocorreu um mau funcionamento do avião ou a tripulação foi responsável? “Um erro do piloto seria naturalmente o melhor resultado para a Sukhoi”, diz William Voss, presidente da Fundação para a Segurança de Voo, com sede na Virgínia.
Mesmo que problemas técnicos não sejam descartados, a evidência aponta nessa direção. A simples trajetória do voo, que foi reconstruída usando dados de radar, leva à suspeita de que o voo final do Superjet envolvia principalmente uma coisa: oferecer aos compradores potenciais do jato regional de preço competitivo o show aéreo mais espetacular possível.
Imediatamente após decolar na tarde de quarta-feira, o capitão Yablontzev virou para o sul, sobrevoou a cidade de Bogor e fez um círculo inicial em torno do vulcão em cuja encosta íngreme o voo encontraria seu trágico fim. A tripulação então pediu permissão para descer a 1.800 metros, apesar do motivo para fazê-lo permanecer um mistério. “Nessa região montanhosa”, diz Voss, o especialista em aviação, “não há motivo para um piloto sensato descer a essa altitude”.
Todavia, Yablontzev virou o avião diretamente para o Monte Salak, o vulcão dormente que o “Jakarta Post” apelidou de “cemitério de aviões”. De fato, vários aviões já se chocaram contra a montanha, incluindo um avião da Força Aérea da Indonésia, em um acidente de junho de 2008 no qual morreram 18 pessoas.
Era precisamente aqui que Yablontzev queria exibir as capacidades do avião. Para piorar ainda mais, nuvens pesadas estavam se reunindo ao redor da montanha no momento. Os moradores locais consideram a área a mais chuvosa e tempestuosa de toda a Indonésia.
Bravata imprudente
Vários fatores tornam uma aproximação do vulcão um risco incalculável, incluindo as serras íngremes, a floresta tropical quente e padrões de circulação de ar caóticos. Além disso, o avião provavelmente estava passando acima do cenário escarpado a uma velocidade de 130 metros por segundo.
É quase impossível realizar com segurança uma manobra com aviões de passageiros como o Superjet nessas circunstâncias --particularmente porque, diferentemente dos jatos militares, os motores desses aviões só reagem aos comandos de impulso com um ligeiro atraso e, por esse motivo, aviões de passageiros devem manter uma distância de segurança de 1.000 metros de montanhas-- uma regra que o capitão Yablontzev aparentemente violou. “O acidente expõe a mentalidade da aviação russa”, diz Heinrich Grossbongardt, um especialista em aviação de Hamburgo, no norte da Alemanha. Em qualquer companhia aérea ocidental, esse comportamento seria visto como uma bravata imprudente.
As imagens do local do acidente mostram que o avião estava inclinado para a direita quando atingiu a encosta. Isso poderia indicar que Yablontzev estava fazendo uma tentativa final de erguer o avião e superar a cadeia montanhosa. “O piloto não tinha absolutamente nenhuma experiência com as características topográficas únicas da área”, nota Jan Richter, um especialista em segurança de voo de Hamburgo.
Além disso, uma foto tirada pelo blogueiro Dolya pouco antes do voo sugere que o sistema de alerta automático de terreno estava desligado. A foto mostra parte do painel de instrumentos na cabine do avião, e o botão correspondente ao sistema de alerta mostra claramente uma mensagem de “fault” (falha) e que está desativado.
‘Como nascer de novo’
Essa não seria a primeira vez que soberba leva a consequências fatais em uma demonstração de avião. Provavelmente o exemplo mais famoso seja o acidente de 1988 de um Airbus A320, durante uma feira de aviação na cidade de Habsheim, na Alsácia. Enquanto sobrevoava a pista, o jato perdeu altitude repentinamente e se chocou contra uma floresta próxima. Um ano depois, um Airbus A300 caiu durante um voo de treinamento próximo da cidade de Luxor, no Egito. E, em 1994, o voo de teste de um Airbus A330 em Toulouse, França, terminou em catástrofe. Como consequência, a principal concorrente da Airbus tem uma regra rígida: em feiras de aviação, os pilotos da Boeing estão proibidos de fazer qualquer manobra arriscada, independente de quanto queiram impressionar compradores potenciais.
Para a Sukhoi, o acidente pode agravar a crise já existente. Apesar da encomenda de mais de 200 aviões, a falta de pessoal qualificado e de perícia suficiente no processo de produção em série fez com que apenas oito dos Superjets estejam atualmente em uso: sete pela Aeroflot da Rússia e um pela companhia aérea Armavia, da Armênia.
Além disso, até mesmo esses clientes estão insatisfeitos. Em março, Konstantin Mokhna, o vice-engenheiro chefe da Aeroflot, humilhou a Sukhoi quando se queixou de “problemas técnicos” e atrasos na entrega de peças sobressalentes. Para corroborar suas queixas, Mokhna citou alguns números embaraçosos: em vez de conseguir manter seus Superjets em serviço na média do setor de oito a nove horas por dia, ele só conseguia usá-los por 3,9 horas por dia. “Para compradores potenciais, essas revelações são ainda mais incômodas do que o acidente na Indonésia”, diz Richard Aboulafia, um especialista em aviação de Nova York.
Enquanto isso, Dolya, o blogueiro fantasiado de Netuno, e Lystseva, a fotógrafa, têm caminhado por Jacarta como se estivessem em transe. Eles ainda não compreendem o que aconteceu. “Por muito pouco nós também estaríamos deitados mortos nessa encosta horrível”, diz Lystseva. “É como nascer de novo.”
A aviação russa, por sua vez, permanecerá aguardando por seu renascimento.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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