Lalo de Almeida/The New York Times
Pelada na periferia de Manaus (Amazonas), na zona norte do país
No Brasil, a bola está sempre em movimento. Ela rola na grama e na areia, no concreto e na calçada. Às vezes, durante a estação chuvosa, ela até rola sobre a água.O jogo organizado, do tipo que a seleção brasileira mostrará no ano que vem na Copa do Mundo, é conhecido como futebol em português. Mas aquele improvisado, jogados nas cidades grandes e no interior, é chamado de pelada, um termo que os brasileiros também usam para se referir a uma mulher nua. Numa noite do mês passado, um porteiro de hotel que esperava para jogar uma pelada no bairro Flamengo explicou a simetria ímpar dessa forma: "futebol e mulheres", disse ele, "são as duas únicas coisas que nós amamos de verdade".
O porteiro vagava ao lado de uma quadra de asfalto. A quadra era iluminada por três postes de luz fraca e pelo brilho da lua. Era quase 23h da noite e, à distância, brilhavam as luzes dos bairros da Glória e do Catete. Os times foram divididos entre jogadores com e sem camisa. As partidas duravam dez minutos ou até que um time marcasse um gol, e um alarme de telefone celular soava para sinalizar o fim da partida.
Não havia torcida; apenas a baía de um lado, a estrada do outro e uma passagem subterrânea de concreto, coberta de pichações e manchada com uma cor de cerveja seca, que levava para longe da quadra e de volta para a cidade. Antes da meia-noite o jogo incluía estudantes, trabalhadores e ratos de praia; depois da meia-noite, chegaram os cobradores de ônibus, garçons e valets, chutando, correndo e suando madrugada adentro. Alguns jogavam com tênis ou chuteiras. Outros jogavam com os pés descalços, e as bolhas em seus calcanhares eram um lembrete de sua devoção.
Um dos jogadores, um adolescente chamado Daniel Lucas, não trazia qualquer sapato. Ele jogava languidamente, deslizando para cima e para baixo pela quadra com suas solas calejadas. Seu time foi derrotado rapidamente. Depois, sentou-se com seu primo Diego e apontou para o lado do pé. "Meu dedão foi deslocado uma vez", disse ele. "A bola bateu com força, e o dedão simplesmente dobrou. Doeu muito, eu chorei."
Ele riu. "Mas então eu o empurrei de volta para o lugar. E continuei jogando."
Lucas e Diego olhavam para o celular, à espera de sua vez de jogar novamente. Enquanto esperavam, conversavam sobre outro jogo, uma outra pelada, com um visitante que estava sentado próximo. Esta acontecia na favela do morro onde moravam, o Fogueteiro, perto do bairro boêmio-chique de Santa Teresa. Segundo eles, em alguns dias o jogo começa depois do café da manhã. E pode terminar pouco antes do café da manhã seguinte.
"Nós jogamos sempre que dá", diz Diego.
Às vezes, os recrutadores vão para as favelas e organizam um jogo. Às vezes, um jogador é escolhido. Lucas disse que jogou uma vez para uma das equipes de juniores do Flamengo, um clube popular do Rio de Janeiro, mas não deu certo. "Eu estou muito velho agora", disse ele, que está com 16 anos. "Então, eu só jogo."
Ele e Diego olharam para o celular, e seus lábios se moveram silenciosamente. Cinco. Quatro. Três. Dois. Um. "Você quer ver um verdadeiro jogo de rua?", disse Lucas ao visitante quando o telefone começou a apitar. "Venha nos ver amanhã. Vamos mostrar pra você."
Dentro da quadra
A bola rola de forma diferente em cada cidade. No Rio, há jogos nas praias, nas favelas e no aterro, a faixa de terra entre o mar e a estrada. Fred, o atacante da seleção brasileira que marcou cinco gols na Copa das Confederações, cresceu em Minas Gerais e lembra que às vezes a bola com que jogava nem era uma bola.
"Eu costumava fazer uma bola de meias", disse. "Fiz uma de papelão. Fiz uma de sacos de plástico. Às vezes ela não era nem redonda. Nós não ligávamos."
Ele deu de ombros. "Nós colocávamos duas pedras ou dois chinelos para definir o gol. Nós jogávamos até num barranco. O gol ficava sempre em cima, e jogávamos dois contra dois ou dois contra três, e brigávamos para ficar com o mesmo gol. Era muito divertido. Mas, se a bola caísse, você tinha que correr por cima das rochas."
A pelada sempre fez parte da cultura brasileira --e adaptou-se à nova face do país. Em São Paulo, por exemplo, o lugar da pelada costumava ser as margens de dois rios da cidade, o Pinheiros e o Tietê . Os jogadores corriam ao lado da água em jogos que eram conhecidos coletivamente como futebol de várzea.
À medida que São Paulo se transformou num centro de negócios da América do Sul, porém, tornou-se uma cidade grande, um labirinto de edifícios de concreto e ruas emaranhadas. Isso significava que o espaço aberto estava a prêmio, e agora os jogos têm se deslocado com frequência para quadras fechadas por todos os lados por cercas de metal. Essas gaiolas são chamadas de quadras.
Na primeira, todos os jogadores eram homens. Isso é padrão; a grande maioria dos jogos têm apenas homens. Na quadra da Vila Maria, um jogador jogava de calça social. Vários usavam camisetas de times brasileiros, como Corinthians e Palmeiras. Fora da cerca, sentado num banco de madeira, Anésio Cornelo assistia ao seu filho de 12 anos, Robson, jogar com homens que tinham duas ou três vezes a sua idade.
"Eu acho que isso é bom para os jogadores brasileiros", disse Cornelo, compartilhando uma teoria popular. "Eles jogam desta forma, na quadra. Eles aprendem a tocar a bola, como controlar a bola. É muito mais rápido aqui do que num campo. Eles ganham mais habilidade aqui do que jogando apenas na grama."
Para a maior parte dos jogadores, essa habilidade não era de todo evidente dentro da quadra. O jogo era acima de tudo irregular, com pouca defesa e momentos mais raros ainda de qualidade. Foi só quando uma menina, Clara Chaves, voltou de uma pausa para beber água no posto de gasolina que o nível aumentou.
Clara estava vestindo uma camisa do Palmeiras. Ela tem 14 anos e joga para uma das equipes femininas do clube num campeonato regional. Ela admitiu que a sua liga --e o futebol feminino em geral no Brasil-- são um trabalho em andamento. Não há uma liga nacional, e as mulheres mais talentosas, como Marta, cinco vezes jogadora do ano, ganham a vida no exterior.
Ainda assim, Clara sonha, bem como os meninos, e ela é afiada e agressiva na quadra, perseguindo a bola no fundo do terreno adversário. Ela fez passes rápidos e precisos para seus colegas do ataque. Ela marcou dois gols em cerca de cinco minutos.
Clara começou a jogar nessa quadra quando tinha 9 anos, disse, e demorou um pouco para se sentir confortável. Inicialmente, os meninos e os homens a marcavam muito. Eles a empurravam. Eles a acotovelavam. Eles a derrubavam com rasteiras, às vezes quando ela estava tão perto da cerca que caía contra o metal enferrujado. Às vezes, dirigiam a ela algum insulto particularmente homofóbico. O tratamento a levou à beira das lágrimas algumas vezes.
Nesse dia, porém, ela foi o melhor jogador em quadra. Seu time ganhou. Em seguida, venceu novamente. E depois mais uma vez. Por uma hora, a única garota em jogo não deixou a quadra.
"Os meninos me tratavam dessa forma no início porque acham que têm algum direito de jogar, porque é o bairro deles e eles são os únicos que querem estar aqui", disse ela. "Muitos homens pensam assim. Talvez algum dia isso mude."
Perseguindo o sonho
É preciso dizer que a bola sempre teve significado, sempre ressoou muito além do pé, do gol e do jogo. Como apenas um exemplo, alguns acreditam que as raízes do apego do Brasil ao jogo bonito --ou ao princípio de que se deve "jogar belamente" ou não jogar-- nasceu da longa história de racismo no país.
Houve um tempo, diz a teoria, em que um brasileiro de pele escura não conseguia sequer tocar um homem branco sem medo de retaliação ou punição.
Por causa disso, dizem alguns, as fintas e dribles escorregadios e furtivos que os jogadores brasileiros aperfeiçoam ao jogar as peladas foram desenvolvidos como uma forma de sobrevivência: o objetivo era passar pelo adversário sem nem mesmo roçar nele, para evitar quebrar o código social.
Agora a pelada continua sendo uma forma de fuga. A ideia de um garoto pobre encontrar a fama e a fortuna depois de ser descoberto numa favela é um clichê, com certeza, mas isso porque ainda há alguma verdade nela: o Brasil todos os anos está entre as nações que exportam a maioria dos jogadores profissionais para as ligas estrangeiras (cerca de 300 só em 2011, de acordo com um estudo recente), e outras centenas jogam por salários variados nos campeonatos do país.
Em lugares mais remotos, como Manaus, a principal cidade da Amazônia, os jovens jogadores muitas vezes saem de casa e vão para cidades maiores no sul por sugestão obscura de um olheiro ou representante de um dos grandes times do país. Não há garantias de sucesso ou mesmo acomodações básicas nestas situações, e as histórias de horror são abundantes. Em 2012, o clube Portuguesa Santista do Estado de São Paulo foi multado por um tribunal brasileiro por colocar em risco a segurança de crianças, de acordo com um relatório da agência Pública de jornalismo investigativo.
Os detalhes foram desconcertantes: uma dúzia de adolescentes havia deixado suas casas no Pará, na Amazônia, para ir para a cidade de Santos seguindo a promessa de um olheiro de que eles jogariam num campeonato juvenil lá. Assim que chegaram, ficaram amontoados num pequeno quarto, com três colchões para compartilhar, por um período de vários dias sem comida. Depois da intervenção do tribunal, a Portuguesa Santista foi ordenada a deixar os meninos irem para casa ou colocá-los num hotel adequado e alimentá-los.
Sob muitos aspectos, porém, não importa. Os garotos sempre vão querer perseguir o sonho, subir a bordo de um dos inúmeros pequenos navios que saem do porto de Manaus, dormir em pequenas redes penduradas do teto da embarcação por dias até chegar na próxima parada em sua jornada para, talvez, possivelmente, serem descobertos. Para eles, é isso que a pelada pode representar.
"Não há nenhum jogador famoso que todo mundo conheça que tenha vindo de Manaus", disse um jogador jovem e talentoso, Kaleb Campelo. "Mas isso não significa que não poderá haver um dia."
Alguns jogadores, como Campelo, que marcou um gol para sua equipe com um chute elegante, podem muito bem jogar o suficiente para sair do país um dia.
"Mas mesmo que ele não faça isso, e para os outros que não têm essa chance, este não é o objetivo", disse Berg de Souza, antigo funcionário do governo em Manaus que ajuda a organizar os jogos em Santo Agostinho. "Há cerca de 50 jogadores nesses jogos. Eles seriam traficantes de drogas se não jogassem. No ano passado, havia gangues no bairro. Eles jogavam e lutavam no campo. Havia armas. Era horrível."
Souza deu de ombros. "Agora, é um pouco melhor. Eu conheço alguns dos traficantes de drogas. Eu organizo as coisas aqui. Às vezes, se eu preciso, até peço dinheiro aos traficantes para me ajudar a organizar os jogos."
Ação ininterrupta
Lucas, o menino do Rio, jogou no aterro até as 5h30 da manhã. Em seguida, foi para casa e dormiu por algumas horas. Então se levantou e jogou novamente.
Ao meio-dia, ouviu um vozerio. O visitante da noite anterior estava lá fora. Os endereços na área são confusos, então o visitante havia vagado pelas ruas que serpenteiam como teias de aranha, subindo a encosta e perguntando aos vizinhos se eles conheciam alguém chamado Lucas. Finalmente, algumas mulheres gritaram seu nome no beco.
Lucas acenou. Seu bairro está pacificado, é uma das favelas da cidade que tem uma presença policial permanente. Isso geralmente elimina o tráfico de drogas pesadas e outros tipos de violência grave, embora assaltos e crimes menores não sejam incomuns. Ainda assim, a rua mais próxima da casa de Lucas é onde as crianças brincam, chutando uma bola para cima e para baixo da rua inclinada. Os objetivos são muitos: marcar gols; mostrar suas habilidades básicas no controle da bola; e impedir que a bola role escadaria abaixo para o fundo do bairro ou, na verdade, para qualquer lugar que possa colocar o jogo em risco.
"Uma vez, a bola quicou no espelho de um carro e derrubou uma senhora de idade", disse Lucas. "Os vizinhos reclamam muito. Eles querem que a gente pare de jogar e vá dormir."
Mas os meninos não param. Eles nunca param. Naquela tarde, eles jogavam numa rua estreita em que só passava um carro por vez, tropeçando nas calçadas, nas paredes e uns nos outros. Eles corriam sob os fios pendurados acima. Eles disparavam morro acima e abaixo com tantos desníveis que havia lugares em que a bola, embora estivesse no chão, podia facilmente rolar para dentro da janela de uma casa.
Depois de algum tempo, Lucas disse que era quase hora de ir para uma quadra próxima, um lugar onde alguns dos melhores jogadores do bairro jogavam. Isso não era uma brincadeira de criança, disse Lucas. Homens jogaram lá, alguns que até entraram para times profissionais locais. "O jogo é muito bom", disse Lucas.
Lucas se aproximou e ficou surpreso. Havia crianças correndo perto de um dos gols, mas nada do grande jogo e nenhum dos melhores jogadores. Lucas virou-se para o visitante com um olhar de desculpas em seu rosto. "Este é o Rio", disse ele.
"Talvez eles venham mais tarde?"
Ele deu de ombros, timidamente, e permaneceu por um momento na entrada. Mas, imediatamente, começou a avançar em direção às crianças. Elas corriam e giravam e passavam e driblavam, e não demorou para que Lucas fizesse o mesmo. Era como se ele fosse atraído para o jogo, como se não pudesse resistir. E talvez não pudesse mesmo. No Brasil, a bola está sempre em movimento.
Tradutor: Eloise De Vylder
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