Neelie Kroes afirmou que não ficou "surpresa" com as denúncias de espionagem
Enquanto os legisladores europeus votam o marco da proteção de dados, a comissária europeia para a Agenda Digital, Neelie Kroes, disse à Spiegel que tanto os governos quanto as empresas privadas estão negligenciando os modelos de negócio e a infraestrutura desatualizada do continente.O Parlamento Europeu deve realizar na segunda-feira (28) sua primeira votação de um pacote abrangente de leis de proteção de dados, reforçadas logo após as denúncias do ex-contratado da NSA (Agência Nacional de Segurança) Edward Snowden sobre a espionagem feita pelas autoridades norte-americanas e britânicas.
O pacote cria uma lei de proteção de dados pela primeira vez unificada para todos os 500 milhões de cidadãos da União Europeia, demolindo a antiga colcha de retalhos de regulações definidas por cada um dos 28 estados membros do bloco. Ela é apoiada pelos defensores da privacidade e pela comissária europeia para a Agenda Digital, Neelie Kroes.
A Spiegel falou com Kroes sobre como os vazamentos de Snowden afetaram a Europa, e sobre a lentidão com que o continente está modernizando sua infraestrutura de telecomunicações.
Kroes: Concordo com isso apenas em parte. De fato, estávamos claramente numa posição melhor naquela época, como na década de 1990, quando criamos e implementamos as normas GSM para as telecomunicações móveis. Naquela época, a Europa estava na liderança global. Mas também temos outros ramos que são invejáveis, como a nanotecnologia ou fotônica.
S: O tom dos relatórios que justificam as suas ideias atuais de reforma é mais crítico. Você aponta que Lagos, na Nigéria, tem uma rede 4G super-rápida, mas a capital da União Europeia, Bruxelas, não tem. E redes lentas não são o único problema. A Nokia, a última fabricante europeia de telefones celulares, acaba de vender esta divisão para a Microsoft. Outras empresas dominantes, como o Google, a Amazon e o Facebook também são norte-americanas.
S: Isso soa como se você estivesse colocando a culpa exclusivamente nas companhias. A defasagem não é muito mais resultado de uma política fracassada?
K: Não estamos na China, onde o governo pode simplesmente decidir virar um setor do avesso. Nós na Europa só podemos criar incentivos. Mas os estados membros da UE são unânimes em pensar que devemos fazer isso. Falei com a chanceler Angela Merkel em março na feira do setor de tecnologia CeBit. É por isso que eu estou apresentando um pacote de telecomunicações que irá limpar os principais problemas. No imensamente importante setor de telecomunicações, ainda não implementamos totalmente o mercado comum. A Europa está dividida em inúmeros principados de telecomunicações. Há mais de 40 grandes prestadores de serviços – nos Estados Unidos, há três.
S: Você já causou críticas por parte do setor de telecomunicações. Sua principal proposta, em particular – proibir maiores taxas de roaming até 2016 – está recebendo uma resistência massiva das companhias. Se os 7 bilhões de euros em receitas de roaming desaparecerem no próximo ano, como dizem muitos diretores de empresas, eles teriam ainda menos capacidade de investir. Teriam de aumentar até mesmo os custos das linhas básicas, inclusive para aqueles usuários que não têm dinheiro para viajar ao exterior.
S: Nos dias de hoje, o Conselho Europeu também quer considerar o seu plano para a Europa se abrir novamente. Isso está chegando muito tarde, e esperamos um pouco mais do que promessas baratas. Os estados membros já estão reduzindo os fundos que você pediu para construir uma rede mais rápida para 1 bilhão de euros (R$ 2,9 bilhões).
K: Também fiquei decepcionada com isso. Com os 9,2 bilhões de euros (R$ 27 bilhões) que pedi, poderíamos ter usado o Banco de Investimento Europeu para facilitar muito o desenvolvimento da infraestrutura de banda larga. Eu teria gasto com prazer o dinheiro nas regiões rurais, onde o setor de TI (tecnologia da informação) tem dificuldades em investir. Mas o Parlamento Europeu está assumindo a questão agora, por isso estou bastante otimista.
S: Por que a Europa deve investir mais em TI quando todo mundo está cortando gastos por causa da crise financeira?
K: Porque o setor é um importante empregador. Nos últimos anos, cerca de 800 mil empregos foram criados na indústria emergente de aplicativos móveis só na Europa. Quando vou a conferências, muitas vezes eu me vejo falando com adolescentes de 14 anos que já fundaram duas empresas de internet. Fomentar a inovação digital entre a geração mais jovem é uma das melhores maneiras de combater o desemprego dos jovens na Europa.
S: Como membro de um partido pró-empresariado, você não deve realmente aprovar a intervenção estatal...
K: Eu certamente não acredito na política industrial intervencionista do século 20. Mas às vezes o Estado precisa oferecer assistência. Pense na Airbus: uma empresa de sucesso que nunca teria conseguido decolar se os estados membros da UE não tivessem juntado forças para apoiá-la.
S: Você gostaria de retirar as barreiras de roaming, mas a Deutsche Telekom está chegando às manchetes com planos que são diametralmente opostos aos seus, como criar uma estrutura para manter o tráfico de internet da Alemanha dentro das fronteiras nacionais e introduzir uma "nuvem" alemã para ajudar a proteger os dados.
K: Entendo por que a Alemanha está disposta a promover elevados padrões de segurança. Mas ter 28 nuvens na Europa não faz sentido. Seria um erro. Não podemos competir nos mercados globais se protegermos todos os nossos dados atrás das fronteiras nacionais.
S: As revelações do ex-funcionário contratado da NAS e informante Edward Snowden confirmaram as suspeitas de que os estados membros da UE têm espionado uns aos outros – como ilustrado pelo ataque cibernético do serviço de inteligência GCHQ da Inglaterra contra a Belgacom, a empresa de telecomunicações belga que pertence em parte ao estado. O que você acha disso?
K: Posso estar um pouco calejada, mas, para ser honesta, não fiquei surpresa. Quando fiz parte do governo holandês na década de 1970 e tratei com os serviços de inteligência, eles me alertaram para evitar discutir assuntos delicados ao telefone. Eu sempre me encontrava pessoalmente com as pessoas para falar sobre assuntos críticos.
S: Você recomenda seriamente que o público europeu faça o mesmo?
K: Quando as pessoas postam tudo no Facebook e depois me pedem para proteger sua privacidade, sou obrigada a dizer: assuma a responsabilidade você mesmo!
S: Mas isso não dá aos serviços secretos o direito de acessar os dados privados das pessoas...
K: Não, e é aí que quero traçar uma linha. Simplesmente quero que as pessoas não sejam ingênuas e assumam que seus dados estão seguros online. Elas precisam tomar medidas para protegê-los.
S: Mas não é uma das tarefas da Comissão Europeia proteger a população europeia?
K: Claro que precisamos defender nossos cidadãos e nossa economia. Mas também é preciso reconhecer os limites. Se na Europa não conseguimos concordar com uma estratégia comum de defesa contra ataques cibernéticos, como podemos falar com uma só voz sobre a NSA?
S: Não é um pouco covarde continuar falando com os Estados Unidos sobre um acordo de comércio livre, como se nada tivesse acontecido?
K: Essas são suas palavras. Mas você tem um pouco de razão. Obviamente não contribui para a nossa credibilidade o fato de que a Inglaterra, membro da UE, esteja espionando a Bélgica, que também é membro, mesmo que esteja supostamente agindo dentro da lei britânica. Isso torna difícil defender uma postura moral.
S: Será que Edward Snowden fez um importante serviço ao público europeu com suas revelações?
K: Seus métodos podem ter sido questionáveis, mas o fato de que esta informação agora se tornou pública é, de toda forma, bastante útil.
S: Sua colega Viviane Reding – comissária europeia para a Justiça – agradeceu publicamente a Snowden. Ela acredita que, graças a ele, países como a Alemanha agora estão levando mais a sério a questão da proteção de dados privados na Europa.
K : Eu não iria tão longe. Mas o caso Snowden nos mostrou tudo o que precisamos para acordar. Precisamos de uma forte indústria europeia de TI. E precisamos ser mais vigilantes quanto ao que acontece com nossos dados.
Tradutor: Eloise de Vylder
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