Governo Cristina recorre à velha cartilha petista para revisar regras de acordo comercial entre os países e, assim, beneficiar indústria local. Ponto central das discussões é o comércio de autopeças
Naiara Infante Bertão - VEJA
A poucos meses do vencimento da primeira fase do acordo automotivo estabelecido em 2008 entre Brasil e Argentina, o país vizinho quer rever as regras. O governo Kirchner lançou mão da cartilha protecionista do PT para reproduzir o que as autoridades brasileiras fizeram no ano passado em relação ao México, quando a presidente Dilma Rousseff determinou a criação de cotas de importação de carros mexicanos, num momento em que os países discutiam um tratado de livre-comércio. O plano argentino ampliou a tensão comercial entre os dois países, cujas relações, pelo menos no âmbito do comércio exterior, não têm sido das mais amigáveis. No acordo vigente ainda hoje, assinado nos termos da Associação Latino-americana de Integração (Aladi) em 2006 - e não do Mercosul -, consta um dispositivo que tornaria o acordo bilateral neste setor livre de qualquer barreira tarifária a partir de 1º de julho de 2013, como são os outros contratos estabelecidos no âmbito do Mercosul.
Contudo, na avaliação argentina, a perda de validade de tal documento poderia implicar numa queda de arrecadação que o país não está disposto a aceitar. O acordo atual prevê que o comércio de veículos entre os vizinhos se baseie no chamado índice flex: um coeficiente de proporção das exportações e importações que significa que, para cada 100 dólares importados, cada país tem direito de exportar 195 dólares sem qualquer imposto. Com o livre-comércio, a Argentina teme acabar importando muito mais do Brasil do que o contrário.
Assim, o governo Kirchner decidiu fazer mais uma de suas usuais intervenções: acionou o brasileiro, dizendo que vai apresentar uma nova proposta que não prejudique tanto sua balança comercial. Novamente, o kirchnerismo utiliza uma ferramenta da qual o governo brasileiro tem se valido muito para proteger a indústria nacional e encarecer as importações.
A história se repete - O Brasil pediu a revisão do acordo automotivo com o México depois que a importação de carros fabricados em território do parceiro latino subiu 70% em 2011. A alegação, à época, foi de que os fabricantes brasileiros eram prejudicados pelo câmbio (o real é mais valorizado que o peso mexicano em relação ao dólar), o Custo Brasil e os salários mais altos que no México. Depois de discussões, o acordo foi revisado e novas cotas de volume comercializado foram estabelecidas até janeiro de 2015. O Brasil também impôs um aumento no índice de conteúdo nacional nos carros que o México produz até 2016.
Procurado, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) respondeu apenas que as negociações com a Argentina já foram abertas e que o Brasil aguarda o país vizinho apresentar uma nova proposta a ser avaliada. “O Brasil deve ceder à Argentina nessa questão porque nosso vizinho é o principal comprador da indústria automobilística brasileira. O fim do acordo não é interessante nem para o governo nem para os empresários”, diz Mauro Laviola, vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).
O setor automotivo (veículos, autopeças, máquinas agrícolas e chassis) representa aproximadamente metade da corrente de comércio entre os dois países, o que dimensiona a importância de se manter um bom relacionamento bilateral. Em 2012, a Argentina acumulou déficit de 1 bilhão de dólares com o Brasil no que se refere ao setor automotivo. Os brasileiros venderam 9,1 bilhões de dólares e compraram 8,1 bilhões de dólares do país vizinho.
Segundo Laviola, esse desequilíbrio já foi pior: em 2011, o déficit argentino foi de 3,075 bilhões de dólares. Ele lembra, ainda, que a responsável por essa conta negativa é a cadeia de suprimentos de componentes para as fábricas de veículos instaladas na Argentina, que produzem modelos com grande quantidade de itens importados do Brasil. Em 2011, fabricantes brasileiros venderam 4,64 bilhões de dólares neste segmento para os portenhos. As compras, contudo, ficaram em 1,37 bilhão de dólares.
Diante desse desequilíbrio, que está longe de ser mortal para a indústria portenha, o governo de Cristina Kirchner quer resolvê-lo de forma tão célere quanto os passos de uma milonga. A ideia da governante é fazer com que o Brasil compre mais peças fabricadas na Argentina para serem usadas na produção dos veículos locais. A importação de autopeças argentinas representou, em 2011, apenas 8,14% das compras totais do Brasil neste segmento, enquanto em autoveículos essa participação subiu para 41,75%. “A Argentina reclama porque, hoje, o Brasil prefere comprar peças da Índia, China e Leste Europeu, que têm não só preços melhores como qualidade superior, com maior nível tecnológico de produção”, diz a professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) Adriana Marotti de Melo.
Fora do tom - O comitê de monitoramento do acordo que avaliará a nova proposta argentina é formado por pessoas do Mdic, da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) e do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças). Segundo uma fonte que acompanha as negociações, as autoridades brasileiras surpreenderam-se com o tom usado pelo governo argentino para pedir a mudança dos termos do acordo. “Foi um tom exagerado, como se fosse uma imposição. A tendência é que o Brasil faça uma contraproposta e ceda em partes”, diz a fonte, que preferiu não ter seu nome revelado.
O protecionismo do qual o Brasil será vítima, caso a decisão argentina se concretize, tem se tornado lugar-comum entre governantes da América Latina, na avaliação de Eduardo Correia de Souza, professor de economia do Insper. “O problema é que eles tendem a mudar as regras do jogo para atender, de maneira populista, essas reclamações pontuais. Ou seja, têm dificuldades em fazer acordos de longo prazo prosperarem”, diz Souza. Ele lembra que esta não é a primeira vez que o Brasil e a Argentina se estranham nas relações comerciais: houve a questão da salvaguarda dos vinhos; a implementação de licenças não automáticas para a importação de produtos; e as barreiras à importação de geladeiras fabricadas no Brasil. “A Cristina (Kirchner) ainda é mais sensível a reivindicações sociais do que a Dilma”, observa o professor. Recentemente, a Argentina estabeleceu a política do ‘uno por uno’: a empresa que quer importar, tem de exportar o mesmo montante em dólar.
Contudo, na avaliação argentina, a perda de validade de tal documento poderia implicar numa queda de arrecadação que o país não está disposto a aceitar. O acordo atual prevê que o comércio de veículos entre os vizinhos se baseie no chamado índice flex: um coeficiente de proporção das exportações e importações que significa que, para cada 100 dólares importados, cada país tem direito de exportar 195 dólares sem qualquer imposto. Com o livre-comércio, a Argentina teme acabar importando muito mais do Brasil do que o contrário.
Assim, o governo Kirchner decidiu fazer mais uma de suas usuais intervenções: acionou o brasileiro, dizendo que vai apresentar uma nova proposta que não prejudique tanto sua balança comercial. Novamente, o kirchnerismo utiliza uma ferramenta da qual o governo brasileiro tem se valido muito para proteger a indústria nacional e encarecer as importações.
A história se repete - O Brasil pediu a revisão do acordo automotivo com o México depois que a importação de carros fabricados em território do parceiro latino subiu 70% em 2011. A alegação, à época, foi de que os fabricantes brasileiros eram prejudicados pelo câmbio (o real é mais valorizado que o peso mexicano em relação ao dólar), o Custo Brasil e os salários mais altos que no México. Depois de discussões, o acordo foi revisado e novas cotas de volume comercializado foram estabelecidas até janeiro de 2015. O Brasil também impôs um aumento no índice de conteúdo nacional nos carros que o México produz até 2016.
Procurado, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) respondeu apenas que as negociações com a Argentina já foram abertas e que o Brasil aguarda o país vizinho apresentar uma nova proposta a ser avaliada. “O Brasil deve ceder à Argentina nessa questão porque nosso vizinho é o principal comprador da indústria automobilística brasileira. O fim do acordo não é interessante nem para o governo nem para os empresários”, diz Mauro Laviola, vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).
O setor automotivo (veículos, autopeças, máquinas agrícolas e chassis) representa aproximadamente metade da corrente de comércio entre os dois países, o que dimensiona a importância de se manter um bom relacionamento bilateral. Em 2012, a Argentina acumulou déficit de 1 bilhão de dólares com o Brasil no que se refere ao setor automotivo. Os brasileiros venderam 9,1 bilhões de dólares e compraram 8,1 bilhões de dólares do país vizinho.
Segundo Laviola, esse desequilíbrio já foi pior: em 2011, o déficit argentino foi de 3,075 bilhões de dólares. Ele lembra, ainda, que a responsável por essa conta negativa é a cadeia de suprimentos de componentes para as fábricas de veículos instaladas na Argentina, que produzem modelos com grande quantidade de itens importados do Brasil. Em 2011, fabricantes brasileiros venderam 4,64 bilhões de dólares neste segmento para os portenhos. As compras, contudo, ficaram em 1,37 bilhão de dólares.
Diante desse desequilíbrio, que está longe de ser mortal para a indústria portenha, o governo de Cristina Kirchner quer resolvê-lo de forma tão célere quanto os passos de uma milonga. A ideia da governante é fazer com que o Brasil compre mais peças fabricadas na Argentina para serem usadas na produção dos veículos locais. A importação de autopeças argentinas representou, em 2011, apenas 8,14% das compras totais do Brasil neste segmento, enquanto em autoveículos essa participação subiu para 41,75%. “A Argentina reclama porque, hoje, o Brasil prefere comprar peças da Índia, China e Leste Europeu, que têm não só preços melhores como qualidade superior, com maior nível tecnológico de produção”, diz a professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) Adriana Marotti de Melo.
Fora do tom - O comitê de monitoramento do acordo que avaliará a nova proposta argentina é formado por pessoas do Mdic, da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) e do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças). Segundo uma fonte que acompanha as negociações, as autoridades brasileiras surpreenderam-se com o tom usado pelo governo argentino para pedir a mudança dos termos do acordo. “Foi um tom exagerado, como se fosse uma imposição. A tendência é que o Brasil faça uma contraproposta e ceda em partes”, diz a fonte, que preferiu não ter seu nome revelado.
O protecionismo do qual o Brasil será vítima, caso a decisão argentina se concretize, tem se tornado lugar-comum entre governantes da América Latina, na avaliação de Eduardo Correia de Souza, professor de economia do Insper. “O problema é que eles tendem a mudar as regras do jogo para atender, de maneira populista, essas reclamações pontuais. Ou seja, têm dificuldades em fazer acordos de longo prazo prosperarem”, diz Souza. Ele lembra que esta não é a primeira vez que o Brasil e a Argentina se estranham nas relações comerciais: houve a questão da salvaguarda dos vinhos; a implementação de licenças não automáticas para a importação de produtos; e as barreiras à importação de geladeiras fabricadas no Brasil. “A Cristina (Kirchner) ainda é mais sensível a reivindicações sociais do que a Dilma”, observa o professor. Recentemente, a Argentina estabeleceu a política do ‘uno por uno’: a empresa que quer importar, tem de exportar o mesmo montante em dólar.
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