sábado, 23 de março de 2013

Grave é a agressão à nossa humanidade, que não pode ser mascarada pela militância racialista, de gênero, de sexualidade, de costumes. Ou: Contra a sindicalização do espírito!
Reinaldo Azevedo - VEJA
Na Universidade de São Paulo, campus de São Carlos, um grupo de estudantes promove um desfile chamado “Miss Bixete”. As calouras são instadas a mostrar, numa espécie de passarela, os seios e a bunda para a macharia se divertir. É evidente que se trata de um absurdo, e ninguém precisa estar contaminado pelo pensamento politicamente correto para se indignar. Um grupo de “feministas” resolveu protestar. Dois marmanjos reagiram tirando a calça; um deles simulou masturbação em público. Fotos postadas no Facebook nesta segunda do trote promovido, na sexta, por alunos da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais estão gerando protestos na rede. Há cenas grotescas de estudantes fantasiados de Hitler, fazendo a saudação nazista etc. E está lá a imagem que vocês veem abaixo. Um rapaz prende numa corrente as mãos de uma estudante com o corpo coberto por tinta preta. Ela traz pendurada no pescoço a inscrição: “Caloura Chica da Silva”, numa alusão à escrava alforriada que foi amante de João Fernandes de Oliveira, um rico contratador de diamantes, com quem teve 13 filhos. Chica fez história em Diamantina. O suposto algoz sorri. É tudo brincadeira? É claro que é tudo brincadeira. Duvido que haja por ali nazistas ou racistas militantes. Avancemos.
Os representantes do Centro Acadêmico já se manifestaram, segundo leio no Globo. “Nossa posição é de total repúdio ao machismo, racismo e homofobia”, afirma Leonardo Custódio , que é vice-presidente do Centro Acadêmico de Direito. Ele diz que o CA não participou da organização do trote. A entidade decidiu convocar uma reunião para tratar do assunto. Também no caso de São Carlos, houve protestos contra os “ismos” e as “fobias” — naquele caso, deu-se especial combate ao “machismo”.
Pois é. Em menos de uma semana, o papa Francisco se fez a imagem e o porta-voz da esperança. Suas primeiras palavras — e é certo que o tempo dirá se os augúrios se confirmam — nos lembram de um humano intransitivo, que merece respeito, que tem de ser preservada a sua dignidade, sua intocabilidade, pouco importando sexo, origem social, religião… Francisco fala de um Deus que “não se cansa de perdoar” — nós é que costumamos nos cansar de pedir perdão, ele notou. E nem por isso a Igreja haverá de anuir com o que considera pecado. Não que essa mensagem seja estranha à Igreja. Não é! Nesse caso, o que importa é o acento conferido pelo Sumo Pontífice à importância da misericórdia. Fala-se, então, de um Deus que abraça em vez de excluir.
As esquerdas, especialmente as latino-americanas, mostram-se visivelmente preocupadas. Se a essência do cristianismo é o amor redentor, os esquerdistas acreditam mesmo é no ódio que redime, aquele que, nas palavras de seu “cristo” mixuruca, Che Guevara, “ faz do homem uma eficaz, violenta, seletiva e fria maquina de matar”. Che, aliás, reescreveu, na teoria e na prática, a Oração da Paz, de São Francisco — homenageado agora pelo novo papa. A versão trevosa é assim:
Senhor! Fazei de mim um instrumento de matar.
Onde houver amor, que eu leve ódio.
Onde houver perdão, que eu leve a ofensa.
Onde houver união, que eu leva a discórdia.
Onde houver a fé, que leve as dúvidas.
Onde houver a verdade, que eu leve o erro.
Onde houver a esperança, que eu leve o desespero.
Onde houver a alegria, que eu leve a tristeza.
Onde houver a luz, que eu leve as trevas.
Em boa parte do planeta, esse tipo de luta não é mais possível. Em seu lugar, promove-se a guerra cultural de todos contra todos. Os valores de um grupo, dos “idênticos entre si”, tomam o lugar dos valores universais — e, em alguns casos, ousam subtrair direitos da maioria em nome ou da proteção às minorias ou da reparação de injustiças históricas. É evidente que esse é o espírito contrário à mensagem essencial do cristianismo. A vasta literatura esquerdista chama esse “homem universal” de mera fantasia do discurso ideológico “conservador”, “de direita”, que busca mascarar as desigualdades para eternizá-la. Horacio Verbitsky, a pena armada contra o papa a serviço de Cristina Kirchner, já escreveu que Francisco está aí para dar alguns pitos nos ricos e pregar conformismo aos pobres da América Latina, contra, ele sugere, os governos ditos “populares” — refere-se a tipos como a própria Cristina, Hugo Chávez, Rafael Correa, Evo Morales…
“Endoidou, Reinaldo? O que isso tudo tem a ver com os episódios lamentáveis da USP de São Carlos ou da Federal de Minas?” Tem tudo a ver. Explica até a reação e a cobertura dispensada ao caso tétrico do rapaz que teve seu braço decepado na Avenida Paulista, em São Paulo.
Esses episódios se tornam notícias e mobilizam a imprensa não porque direitos fundamentais do homem estejam sendo agredidos, mas porque as minorias sindicalizadas acusam o ataque a um dos seus, ainda que de maneira simbólica. O QUE ESTOU DIZENDO, MEUS CAROS, É QUE, SE O MAIS NÃO NOS CAUSAR INDIGNAÇÃO, NÃO SERÁ POR INTERMÉDIO DO MENOS QUE VAMOS NOS SALVAR. Os pretos são menos do que “o” humano. Os brancos são menos do que “o” humano. As mulheres são menos do que “o” humano. Os cristãos são menos do que “o” humano. Os judeus são menos do que “o” humano. Os homossexuais são menos do que “o” humano. Os ciclistas são menos do que “o” humano…
Compreendo, sim, que haja expressões de todos esses grupos a apontar discriminações específicas, particulares, que existem. Ou serei eu a negar o racismo, o antissemitismo, a cristofobia, a homofobia, o machismo? Todas essas manifestações de estupidez estão por aí. A questão é saber com quais valores e com quais instrumentos nós vamos combatê-las. Eu estou absolutamente convencido de que a militância particularista, que pede leis especiais de proteção para minorias — em vez de cobrar que as leis que garantem a igualdade sejam efetivamente aplicadas — contribuem para o enfraquecimento daquilo que um dia já se chamou “humanismo” em benefício desses particularismos.
A expressão muitas vezes exacerbada de uma pauta específica, que diz respeito a uma comunidade em particular, acaba gerando reações também indesejáveis, ainda que não se trate de uma escolha política. Eu duvido que aquele tonto que segura a caloura pintada de preto seja um racista; duvido que os idiotas que promovem a Miss Bixete tratem mães, namoradas ou irmãs, que mulheres são, como prostitutas. É muito provável que não. Esses atos estúpidos não chegam nem mesmo a ser sinceros; são uma espécie de contrafação, de falsa resistência àquela exacerbação militante. “Já que as feministas ficam tão bravas, então tome Miss Bixete; em tempos de cotas, tome Chica da Silva acorrentada”… Não! Não são os “fascistas” se manifestando, como querem alguns tontos; tampouco se trata da “direita”, dos “reacionários”…
Trata-se de reações imbecis, que se pretendem bem-humoradas, num quadro, vejam que coisa!, de decadência dos valores gerais do humanismo e de triunfo dos particularismos. Não há, por exemplo, discurso racional possível que suporte, em nome do feminismo, a defesa da legalização do aborto. Não há como. O que atenta contra a vida não pode ser em favor da “mulher” como categoria; em situações excepcionais, atenção!, a vida de “uma” mulher, não de “A mulher”, pode estar numa relação opositiva com a do feto — e, para tanto, a legislação brasileira tem uma resposta. Proteger ou ampliar os direitos dos gays, dos negros, dos índios, de quem quer que se sinta discriminado, não convive, não numa ordem racional ao menos, com a agressão a fundamentos da democracia e do humanismo.
Deploro os imbecis que se manifestaram daquela forma em São Carlos ou em Minas; repudio todos esses atos de degradação da pessoa humana, ainda que sob o pretexto da brincadeira e da galhofa; jamais convivi bem com esses rituais de humilhação que agridem a natureza exclusiva do homem (“que diabo é isso, Reinaldo?”); nem mesmo estou entre aqueles que condescendem tranquilamente, a exemplo de certa antropologia do miolo mole, com “variantes culturais” em que certas práticas violentas são consideradas “normais”. Sim, se fosse missionário, também eu tentaria impedir certas tribos de enterrar vivos seus bebês deficientes… Também nesse sentido, sou muito “jesuítico”. A propósito: é próprio e exclusivo da natureza humana ter consciência de si; também é próprio e exclusivo da natureza humana ter consciência da existência do “outro”. Portanto, o que é vivo no homem é intocável, ainda que ele próprio já não possa mais responder por si mesmo; ainda que ele próprio pedisse para morrer — para que pedisse, forçoso seria que vivo estivesse; não me cumpriria lhe tirar a chance do arrependimento. O homem não é Deus. Também a eutanásia é uma abominação.
Sem a clareza da inviolabilidade da vida e da intocabilidade do outro, a convivência se degrada. Durante a Revolução Cultural na China, e não era brincadeira naquele caso, pessoas eram realmente amarradas, exibiam cartazes no peito se confessando traidoras e eram expostas à humilhação. Intelectuais de esquerda mundo afora aplaudiam aquele “novo homem”…
Quem sabe ler entendeu que não estou minimizando aqueles episódios lamentáveis nas universidades. Eu estou, na verdade, afirmando que são mais graves do que parecem e que nossa reação de indignação não pode ser seletiva nem pautada pelos sindicalistas do espírito.

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