terça-feira, 19 de março de 2013

Morte de irmãs escancara onda de suicídios no Afeganistão
Azam Ahmed - NYT
The New York Times

Vestido das irmãs Fareba e Nabila, que se suicidaram. Como de costume, os pais doaram os pertences das filhas, exceto dois vestidos. Em dias ruins, eles seguram as roupas contra seus rostos
Vestido das irmãs Fareba e Nabila, que se suicidaram. Como de costume, os pais doaram os pertences das filhas, exceto dois vestidos. Em dias ruins, eles seguram as roupas contra seus rostos
À primeira vista, as irmãs Gul pareciam ter tudo: elas eram jovens, bonitas, bem educadas e bem de vida e testavam os limites das tradições conservadoras afegãs com jeans justos, maquiagem e celulares.
Mas Nabila Gul, 17, uma brilhante e corajosa estudante do segundo grau, foi longe demais. Ela se apaixonou.
Sua irmã mais velha, Fareba, 25, alarmada com a possível vergonha e as consequências de Nabila buscar um jovem fora dos canais da família, tentou intervir. A discussão entre as duas num dia de novembro terminou em luto: caixões lado a lado, com ambas as meninas mortas poucas horas depois de consumirem veneno de rato roubado da dispensa de grãos de seu pai.
Entrevistas com familiares e funcionários do governo e do hospital revelam uma tragédia causada por erro de cálculo: sob a pressão da irmã mais velha para parar de falar com o rapaz, Nabila tentou ingerir apenas veneno suficiente para assustar sua família, mas não para se matar. Mas calculou mal. Dominada pela culpa e pela tristeza, Fareba seguiu os passos da irmã e tirou a própria vida na frente do templo mais sagrado da cidade.
A morte das irmãs destruiu a família e tocou num ponto nevrálgico para os moradores de Mazar-i-Sharif, uma cidade cada vez mais marcada pelo desespero de suas jovens. Para muitos, as mortes passaram a simbolizar uma crise maior: uma onda de tentativas de suicídio que se intensifica.
Embora o governo diga que não coleta dados sobre esses casos, o principal hospital da cidade diz que tem estado sobrecarregado, com três ou quatro pacientes que dão entrada todos os dias --mais do que um ou dois que chegavam por mês há uma década.
O número de tentativas cresceu com tal velocidade que o chefe de investigações da polícia, o coronel Salahudin Sultan, diz que não consegue mais acompanhá-las.
"Não temos tempo nem recursos para investigar esses casos", explicou. "Caso contrário não conseguiríamos fazer mais nada."
Quanto às perguntas sobre o motivo --e o local-- parece haver tantas teorias quanto número de casos. A maioria das explicações gira em torno do perfil da cidade de Mazar no Afeganistão como um afluente centro multicultural, relativamente mais liberal e exposto às influências europeias.
Enquanto as meninas afegãs são regularmente expostas às normas sociais do ocidente através de séries de TV e da internet, o fato é que vivem numa sociedade conservadora e machista do Afeganistão. O confronto é cruel, e pode ser devastador.
"A maioria das meninas não morre, mas todas elas tomam veneno ou pelo menos ameaçam se matar", diz Khowaja Noor Mohammad, chefe de medicina interna no Hospital Regional Mazar-i-Sharif. "Esse é o seu grito de socorro."
O médico que tentou salvar as irmãs Gul, Dr. Khaled, fez uma lista de pacientes dos últimos dois meses. Enquanto se debruçava sobre a lista, pronunciava o nome de várias mulheres jovens que tentaram suicídio: Fátima, Mariam, Zulfiya, Zar Gul, Basbibi.
"Há provavelmente 200 casos aqui de tentativa de suicídio", disse Khaled, que atende por um único nome, balançando a lista no ar. "Nas últimas 12 horas, tivemos três."
Talvez nenhum caso seja mais emblemático --ou mais discutido-- do que as mortes das irmãs Gul.
As duas vieram de uma família progressista, com boa escolaridade. Mohammed Gul, o pai, é promotor. Nabila estava prestes a se formar no segundo grau e planejava ir à faculdade na cidade. Fareba já estava na faculdade e esperava seguir os passos de seu pai no Direito. As jovens eram decididamente modernas, e não pareceriam fora de lugar em muitas cidades ocidentais.
Nabila era impetuosa, com um temperamento explosivo e uma personalidade forte. Ela costumava desafiar o que Fareba dizia para ela, rejeitando a deferência aos mais velhos na sociedade afegã. Fareba, uma mulher afetuosa que costumava chorar depois de pequenas discussões, confidenciou a um amigo próximo que sentia que Nabila não a respeitava.
Sua última briga, na manhã de 26 de novembro, envolveu um rapaz por quem Nabila se dizia apaixonada. Fareba achava que o relacionamento não era apropriado e pediu que a irmã o abandonasse. Nabila se recusou, e as duas começaram a gritar.
Sua mãe ouviu a briga e correu para impedi-la, dando dois tapas no rosto de Nabila por responder para sua irmã mais velha, de acordo com pessoas próximas à família. A menina mais nova fugiu em lágrimas.
Uma hora mais tarde, a mãe de Nabila encontrou-a no chão de seu quarto, com uma espuma branca escorrendo pelos cantos da boca.
No hospital, os médicos tentaram desesperadamente retirar o veneno de rato do corpo da menina enquanto familiares cercavam a cama, implorando que Nabila se recuperasse.
A mãe disparou um olhar de raiva a Fareba e disse: "Se Nabila morrer, será sua culpa", de acordo com um médico que estava na sala no momento.
Mohammed Gul ficou em silêncio, segurando a mão da filha. Ela perdia e recobrava a consciência. Ela disse que não tinha a intenção de tomar muito veneno e que estava arrependida.
Às 14h30, Nabila morreu. No caminho do hospital para casa, seu pai sofreu um ataque cardíaco e deu entrada como paciente.
Na casa, as pessoas começaram a se reunir. O filho mais velho dos Guls, Abdul Wahid, recebeu os convidados que se aglomeraram no salão verde claro da casa. Mas ele estava preocupado com Fareba, a irmã de quem ele era mais próximo. Ela não estava respondendo telefonemas nem mensagens de texto.
Às 16h, o telefone tocou. Era Fareba. Sua voz estava rouca e lenta, ela disse que estava no templo Hazrat Ali, uma mesquita impressionante com telhas azuis num mar de mármore branco. Preso na casa com os visitantes, Abdul Wahid pediu a seu tio, Malim Faiz Mohammad, que a buscasse.
Quando ele chegou à mesquita, Mohammad viu uma multidão perto da entrada para o templo. Ele encontrou sua sobrinha deitada sobre o mármore frio no centro da multidão. Fios de espuma vazavam do canto de sua boca.
Ele a levou imediatamente ao hospital. Médicos colocaram Fareba numa sala no mesmo corredor que seu pai, que ainda estava se recuperando. Nenhum dos dois sabia que o outro estava lá.
Ninguém mais sabia do paradeiro de Fareba. Com a família preocupada em preparar o corpo de Nabila para o enterro, o tio disse que decidiu guardar o assunto para si mesmo, não querendo derrubar a família já frágil.
Os médicos trabalharam em Fareba por mais de uma hora. O tio ficou em silêncio à medida que eles realizavam o mesmo procedimento que havia fracassado em reanimar sua irmã horas antes. Às 17h30, os médicos pronunciaram a morte de Fareba.
"Morrer dessa forma simplesmente não faz sentido", disse Mohammad em uma entrevista. "Preferia que elas tivessem morrido num acidente."
Ele levou o corpo de Fareba de volta para a casa, mas o escondeu numa sala separada do lado de fora do complexo onde ninguém o veria. Ele ainda não era capaz de lhes dar a notícia.
A verdade veio à tona no dia seguinte.
Na manhã seguinte, Mohammed Gul acordou no hospital. Ele se sentou por um tempo na sala ensolarada, reunindo seus pertences, ainda incapaz de entender a morte de Nabila. Ele precisava falar com Fareba sobre o que aconteceu, pensou.
De volta para casa, ele foi escoltado para o pátio, onde caixões estavam sentados lado a lado.
"Por que há dois caixões?", perguntou a seu irmão. "Quem está no segundo?"
As irmãs estão enterradas em um cemitério comum a poucos quilômetros da casa da família, com suas sepulturas marcadas com dois postes de madeira e um monte de pedras. Um bando de crianças percorriam o cemitério, transformando as pistas enlameadas em playground.
Mohammed Gul dificilmente se alimenta e sofre ataques contínuos da doença. Sua mulher, devastada, raramente sai de sua casa fria de concreto. Lembranças da perda brotam dos rituais cotidianos como se sentar à mesa da cozinha, com duas cadeiras agora vazias.
Os pais procuram conforto em pequenas coisas. À noite, Gul e sua mulher dormem no quarto das meninas, ele na cama de Fareba, ela na de Nabila. Eles deram os pertences das irmãs, como é de costume, exceto dois vestidos. Em dias ruins, os pais seguram as roupas contra seus rostos.
Tradutor: Eloise De Vylder

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