sábado, 16 de março de 2013

PAÍS DE SELVAGENS

Monumento antixixi
Fonte Monumental, que inspirou até Adoniran Barbosa, ganha 'aquário' para não ser mais usada como banheiro público
JAIRO MARQUES - FSP
Cantada por Adoniran Barbosa, símbolo de uma São Paulo em transformação nos anos 1920 e protagonista de episódios históricos, uma das mais significativas obras à céu aberto da capital só poderá ser observada através de uma redoma de vidro.
Inaugurada em 1927, a Fonte Monumental, na praça Julio Mesquita, no centro, em reforma desde o ano passado, ficará cercada por placas de vidro, que começaram a ser instaladas ontem e formarão uma espécie de aquário.
O objetivo é protegê-la de vândalos e, principalmente, evitar que a fonte continue sendo usada como um banheiro público.
Além disso, o material em bronze do chafariz, lagostas e mascarões, foi substituído por réplicas em resina.
A reforma custou cerca de R$ 500 mil ao DPH (Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura).
"É polêmico e confronta a teoria da restauração, pois cria um 'falso histórico' que engana o observador com uma réplica", diz Fábio Donadio, chefe da Seção Técnica de Monumentos e Obras Artísticas do DPH.
"Mas, no local onde está o monumento, em plena cracolândia, colocar uma lagosta de bronze é pedir para haver vandalismo."
Segundo o DPH, se a ideia de pôr o chafariz no "aquário" for bem aceita, ela poderá ser aplicada em outros monumentos em risco.
"Os vidros vão ser colocados para que a fonte não se torne uma piscina, um banheiro público ou um tanque de lavar roupa, como já vimos acontecer", diz Donadio.
Mesmo aplicando diversos produtos químicos para limpar a superfície em mármore de Carrara, foi impossível remover manchas amareladas ou amarronzadas criadas pelo acúmulo de xixi.
"As pessoas que estão morando nas ruas não fazem xixi nas árvores, eles querem fazer nos monumentos. As marcas de ureia não saem."
Ainda segundo Donadio, o mármore é um material considerado relativamente fácil para o artista trabalhar. Mas é também sensível ao tempo, ao vandalismo e à poluição.
"É preciso aplicar uma cera especial a cada seis meses em obras como a fonte, que nunca recebeu o tratamento. O resultado é que há diversas partes estragadas. Para não comprometer ainda mais, resolvemos não mexer."
Especialistas em patrimônio histórico lamentam a medida de pôr a fonte dentro de uma redoma de vidro. Parte deles, porém, concorda que é uma saída para protegê-la.
"Há uma questão real posta que é o vandalismo. É uma situação muito difícil, lamentável, mas, em caráter experimental, acho que pode ser positivo", afirma Lucila Lacreta, urbanista do Movimento Defenda São Paulo.
Para ela, é preciso promover uma "cultura de valorização" para que a comunidade passe a cuidar das obras.
Para Lucio Gomes Machado, professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a decisão é "triste e polêmica", mas necessária.
"No mundo, a substituição de peças valiosas expostas por réplicas se tornou prática comum. As técnicas de reprodução estão muito desenvolvidas. É importante, porém, avisar os visitantes disso."
Para ele, o "aquário" será melhor do que o gradil que já houve em volta da fonte, na década de 1980.
Também conhecida como "fonte das lagostas", a obra sucumbiu ao processo de degradação da região nos anos 1960. Os elementos de bronze foram furtados e destruídos, o que inspirou Adoniran Barbosa e Tasso Rangel a comporem "Roubaram a lagosta".

Envidraçar monumento revela pânico do poder público
FERNANDO SERAPIÃO ESPECIAL PARA A FSP
Dizem que as construções não falam, mas, para quem pode entendê-las, elas revelam muito da sociedade que as criou e conserva. Prova é a Fonte Monumental, conhecida antigamente como "fonte das lagostas", graças aos crustáceos de cobre que a ornamentavam.
Em primeiro lugar, a fonte revela antigas preferências da elite: a inspiração francesa de seu desenho e dos edifícios da praça -primeiro conjunto significativo de prédios de apartamentos da cidade. Eles materializaram, com um século de atraso, ideias urbanísticas da revolução burguesa, que abriu avenidas em Paris com eixos visuais marcados por monumentos e edifícios de mesmo padrão arquitetônico.
Se a ideia do Plano Haussmann era controlar revoltas e retirar pobres do centro de Paris, ela também definiu o espaço público como palco de coexistência de diferentes classes sociais. Se o passado da fonte é artisticamente requentado, em 1939 ela viu a vanguarda ao banhar escandalosamente Flávio de Carvalho.
A relação usual da sociedade com o espaço público pode ser traduzida no descaso que a acompanhou: criada para a Sé, foi jogada na São João e, ao ser abandonada pela elite, assistiu vândalos levando as lagostas, roubo eternizado em samba de Adoniran Barbosa.
Em resposta, foi cercada com grades; reaberta, virou point de usuários de crack.
Restaurações como as da fonte buscando superar a finitude que nós (e ela) iremos enfrentar: a nota negativa são as novas lagostas, em resina para não inspirar novos sambas; a positiva são as marcas de urina, cicatrizes eternizadas no Carrara que revelam a sociedade que vivemos.
Em vez de construir banheiros públicos, a municipalidade preferiu cercá-la com vidro.
Ponto para a indústria da segurança, que se alimenta do amedrontamento e estimula segregação em condomínios e shoppings. Quem perde é a sociedade, que se assusta com o recado: "O poder público está em pânico e se sente incompetente em garantir a ordem pública", a fonte grita de dentro do aquário.

Nenhum comentário: