Fernando Ulrich, - IMB
O que é Bitcoin
Na última vez em que fui perguntado sobre o tema — cerca de um mês atrás —, respondi exatamente da mesma forma que nas outras vezes: "Conheço muito pouco de Bitcoin, mas, pelo pouco que conheço, afirmo que não me parece um sistema monetário seguro. Acho que cedo ou tarde algum hacker pode infiltrar-se nele e perturbá-lo, alterar os saldos das carteiras, criar bitcoins para si mesmo, etc.". Dito isso, ofereço agora um conselho: quando não se sabe o suficiente sobre um assunto, é melhor permanecer em eterno silêncio ou simplesmente responder "não sei" do que oferecer opiniões que beiram a assunção da mais clara ignorância. Não posso voltar no tempo e reprimir o Fernando de um mês atrás. Posso, no entanto, buscar minha redenção oferecendo uma análise mais fundamentada, sob a perspectiva de um estudioso (e entusiasta) de teoria monetária e bancária.
Mas, afinal, o que é o Bitcoin[1]? O que é uma moeda digital? Detlev Schlichter explica que:
O Bitcoin é um dinheiro intangível criado na internet. É um software. O Bitcoin pode ser imaginado como sendo uma commodity criptográfica. Trata-se de uma moeda criada digitalmente, completamente descentralizada, que existe somente no ciberespaço. Ela é produzida e gerida pelos computadores conectados à rede mundial, os quais formam a rede Bitcoin. Trata-se de um sistema de pagamento peer-to-peer que permite que as transações sejam assinadas digitalmente. O Bitcoin não possui um emissor centralizado e não há nenhuma autoridade central controlando o processo.
De acordo com seus criadores, a base monetária se expande de maneira limitada e controlada, sendo programada no software do Bitcoin. Porém, tal expansão é totalmente previsível e conhecida antecipadamente pelo público usuário, o que significa que tal inflação não pode ser manipulada para alterar a distribuição de renda entre os usuários. A todo e qualquer momento, qualquer usuário pode saber não apenas quantos bitcoins ele possui, como também quantos bitcoins existem no total. Ainda de acordo com os criadores, somente 21 milhões de unidades de dinheiro podem ser criadas [até o ano de 2140], o que significa que, após certo ponto, a quantidade de dinheiro torna-se fixa.
Honestamente, quando iniciei minha pesquisa e estudo da moeda digital não esperava nada muito surpreendente. Mas no decorrer das leituras, o entendimento, as descobertas, as implicações e o potencial do projeto fizeram-me adotar uma postura, no mínimo, mais humilde. De soberba indiferença, passei pelos estágios de incredulidade à incompreensão. Do conhecimento veio a estupefação e o fascínio. Não tardou muito para o fascínio tornar-se admiração, com uma boa dose de entusiasmo e otimismo. E digo isso analisando o fenômeno por distintos prismas: i) como economista e estudioso de teoria monetária e bancária; ii) como investidor e empresário; e iii) como amante das liberdades individuais.
O nascimento do dinheiro… Quem já se aprofundou um pouco em teoria monetária conhece o famoso teorema da regressão de Ludwig Von Mises. Segundo esse teorema, é impossível qualquer tipo de dinheiro surgir já sendo um imediato meio de troca; um bem só pode alcançar o status de meio de troca se, antes de ser utilizado como dinheiro, ele já tiver obtido algum valor como mercadoria. Qualquer que seja a moeda, ela precisa antes ter tido algum uso como mercadoria, para só então passar a funcionar como dinheiro.
Essa é a teoria. Esse é o teorema. No caso do ouro e da prata, sabemos que foram escolhidos pela humanidade como o dinheiro por excelência ao longo de centenas de anos por meio de milhões de intercâmbios no mercado. Mas seria impossível datar precisamente quando o ouro surgiu como mercadoria, quando passou a ser utilizado como meio de troca e quando preponderou como a mercadoria mais "vendável" (marketable), tornando-se por fim, o meio de troca universalmente aceito, ou, simplesmente, dinheiro.
No caso de Bitcoin, temos a data exata: a moeda digital nasceu no dia 3 de janeiro de 2009. Alguns meses depois, passou a ser consumida, ou adquirida, não para ser usada como meio de troca — afinal de contas, pouquíssimos indivíduos sequer conheciam o Bitcoin —, mas sim para satisfazer alguma necessidade individual. E é totalmente irrelevante identificarmos com precisão qual necessidade ou objetivo levou os primeiros compradores de Bitcoin a trocar alguns dólares por uma unidade bitcoin (1 BTC). "No caso de objetos intangíveis, como o Bitcoin", afirma Konrad S. Graf em um espetacular artigo sobre a natureza do Bitcoin, "a demanda para o consumo direto é determinada por valores primariamente psicológicos ou sociológicos". Como o geek que quer ostentar as maravilhas de uma criptografia, ou o sujeito que compra bitcoins como forma de protesto ao status quo.
O que importa não é o porquê, mas sim o fato de que houve demanda real e bitcoins foram adquiridos e preços foram formados na busca por essa "mercadoria" (dígitos eletrônicos no ciberespaço). Nesse sentido, o nascimento do Bitcoin em nada contraria o teorema da regressão de Mises.
Mas e quando o Bitcoin virou meio de troca? A primeira transação de que se tem notícia se deu em Maio 2010 quando 'laszlo' trocou uma pizza por 10.000 BTC — em retrospecto pode ter sido a pizza mais cara do mundo (10 mil BTC = 1,2 milhão de dólares, cotação de 19/04/13). Poderíamos dizer que bitcoins ainda não eram um meio de troca geralmente aceito, portanto, isso foi, em realidade, um escambo. Pode ser que sim. Mas é uma mera tecnicalidade desimportante. O fato é que, desde então, bitcoins passaram a funcionar como meio de troca, de acordo com o seu objetivo basilar.
A verdade é que estamos testemunhando em "tempo real" o nascimento de um dinheiro. Como um economista, isso me parece fantástico. Estudar a teoria é fundamental. Mas vivenciá-la na prática é impagável. Ser um especialista na Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos é de suma importância. Mas presenciar uma bolha imobiliária sendo formada, assistir ao seu estouro e a todas as consequências reais e palpáveis é uma lição que não se esquece jamais.
Mas voltando à moeda digital, poderíamos já considerar o Bitcoin como dinheiro? Em sua tese de mestrado, Peter Surda afirma que não, Bitcoin ainda não é dinheiro. Tornar-se-á algum dia. Mas ainda não o é. Seguindo a definição da Escola Austríaca de Economia, "Bitcoin não é um meio de troca universalmente aceito", afirma Surda. Mas se não é dinheiro, então o que é? Seria um "meio de troca secundário" (Mises) ou um quase-dinheiro (Rothbard).
Por outro lado, Graf levanta um ponto interessante: "Se dinheiro é definido como meio de troca universalmente aceito, então temos que qualificar o universalmente". Porque, se dissermos que dinheiro é o meio de troca "mais" universalmente aceito, "então certamente não chamaríamos Bitcoin de dinheiro", conclui Graf, adicionando que "tampouco chamaríamos Pesos Mexicanos de dinheiro dentro dos Estados Unidos". Entramos em uma área cinzenta, sem dúvida, mas há mérito no seu ponto. Graf concede que a única razão — ainda que passível de debate — para não chamar Bitcoin de dinheiro ainda, reside no fato de que, "aparentemente, muitos usuários ainda enxergam os bitcoins através da lente da taxa de câmbio em relação às suas moedas locais". Em contrapartida, Frank Shostak afirma que Bitcoin "não é uma nova forma de dinheiro que substitui formas antigas, mas na verdade uma nova forma de empregar dinheiro existente em transações. Uma vez que Bitcoin não é dinheiro de verdade, mas meramente uma nova forma diferente de empregar a moeda fiduciária existente, ele não pode substituí-la".
Contrariando Shostak, Bitcoin é um novo meio de troca, sim, ainda que não universalmente aceito. Ele é o que Mises classifica como dinheiro commodity. Mas não no sentido material como normalmente se entende, e sim no sentido de "dinheiro coisa" ou "dinheiro de fato" — exatamente nos termos de sua obra prima original em alemão, Theorie des Geldes und Umlaufsmittel (The Theory of Money and Credit). Dinheiro commodity em alemão é "Sachgeld" (sach=coisa, geld=dinheiro). Logo, como brilhantemente elucida Graf, "uma unidade bitcoin é o próprio meio de troca, é o dinheiro".
Já Nikolay Gertchev oferece uma crítica sob uma ótica distinta, alegando que "não podemos ter um dinheiro que dependa de outra tecnologia (internet)… Bitcoins jamais atingiriam o nível de universalidade e flexibilidade que o dinheiro material permite por natureza. Portanto, no livre mercado, dinheiro commodity, e presumivelmente ouro e prata, ainda tem uma vantagem comparativa". Será que Gertchev tem razão?
No próximo artigo trataremos dessa questão, buscando descobrir se o Bitcoin tem potencial para ser um meio de troca inclusive melhor que o ouro ou o papel-moeda fiduciário.
Artigo originalmente publicado em O Ponto Base
O nascimento do dinheiro… Quem já se aprofundou um pouco em teoria monetária conhece o famoso teorema da regressão de Ludwig Von Mises. Segundo esse teorema, é impossível qualquer tipo de dinheiro surgir já sendo um imediato meio de troca; um bem só pode alcançar o status de meio de troca se, antes de ser utilizado como dinheiro, ele já tiver obtido algum valor como mercadoria. Qualquer que seja a moeda, ela precisa antes ter tido algum uso como mercadoria, para só então passar a funcionar como dinheiro.
Essa é a teoria. Esse é o teorema. No caso do ouro e da prata, sabemos que foram escolhidos pela humanidade como o dinheiro por excelência ao longo de centenas de anos por meio de milhões de intercâmbios no mercado. Mas seria impossível datar precisamente quando o ouro surgiu como mercadoria, quando passou a ser utilizado como meio de troca e quando preponderou como a mercadoria mais "vendável" (marketable), tornando-se por fim, o meio de troca universalmente aceito, ou, simplesmente, dinheiro.
No caso de Bitcoin, temos a data exata: a moeda digital nasceu no dia 3 de janeiro de 2009. Alguns meses depois, passou a ser consumida, ou adquirida, não para ser usada como meio de troca — afinal de contas, pouquíssimos indivíduos sequer conheciam o Bitcoin —, mas sim para satisfazer alguma necessidade individual. E é totalmente irrelevante identificarmos com precisão qual necessidade ou objetivo levou os primeiros compradores de Bitcoin a trocar alguns dólares por uma unidade bitcoin (1 BTC). "No caso de objetos intangíveis, como o Bitcoin", afirma Konrad S. Graf em um espetacular artigo sobre a natureza do Bitcoin, "a demanda para o consumo direto é determinada por valores primariamente psicológicos ou sociológicos". Como o geek que quer ostentar as maravilhas de uma criptografia, ou o sujeito que compra bitcoins como forma de protesto ao status quo.
O que importa não é o porquê, mas sim o fato de que houve demanda real e bitcoins foram adquiridos e preços foram formados na busca por essa "mercadoria" (dígitos eletrônicos no ciberespaço). Nesse sentido, o nascimento do Bitcoin em nada contraria o teorema da regressão de Mises.
Mas e quando o Bitcoin virou meio de troca? A primeira transação de que se tem notícia se deu em Maio 2010 quando 'laszlo' trocou uma pizza por 10.000 BTC — em retrospecto pode ter sido a pizza mais cara do mundo (10 mil BTC = 1,2 milhão de dólares, cotação de 19/04/13). Poderíamos dizer que bitcoins ainda não eram um meio de troca geralmente aceito, portanto, isso foi, em realidade, um escambo. Pode ser que sim. Mas é uma mera tecnicalidade desimportante. O fato é que, desde então, bitcoins passaram a funcionar como meio de troca, de acordo com o seu objetivo basilar.
A verdade é que estamos testemunhando em "tempo real" o nascimento de um dinheiro. Como um economista, isso me parece fantástico. Estudar a teoria é fundamental. Mas vivenciá-la na prática é impagável. Ser um especialista na Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos é de suma importância. Mas presenciar uma bolha imobiliária sendo formada, assistir ao seu estouro e a todas as consequências reais e palpáveis é uma lição que não se esquece jamais.
Mas voltando à moeda digital, poderíamos já considerar o Bitcoin como dinheiro? Em sua tese de mestrado, Peter Surda afirma que não, Bitcoin ainda não é dinheiro. Tornar-se-á algum dia. Mas ainda não o é. Seguindo a definição da Escola Austríaca de Economia, "Bitcoin não é um meio de troca universalmente aceito", afirma Surda. Mas se não é dinheiro, então o que é? Seria um "meio de troca secundário" (Mises) ou um quase-dinheiro (Rothbard).
Por outro lado, Graf levanta um ponto interessante: "Se dinheiro é definido como meio de troca universalmente aceito, então temos que qualificar o universalmente". Porque, se dissermos que dinheiro é o meio de troca "mais" universalmente aceito, "então certamente não chamaríamos Bitcoin de dinheiro", conclui Graf, adicionando que "tampouco chamaríamos Pesos Mexicanos de dinheiro dentro dos Estados Unidos". Entramos em uma área cinzenta, sem dúvida, mas há mérito no seu ponto. Graf concede que a única razão — ainda que passível de debate — para não chamar Bitcoin de dinheiro ainda, reside no fato de que, "aparentemente, muitos usuários ainda enxergam os bitcoins através da lente da taxa de câmbio em relação às suas moedas locais". Em contrapartida, Frank Shostak afirma que Bitcoin "não é uma nova forma de dinheiro que substitui formas antigas, mas na verdade uma nova forma de empregar dinheiro existente em transações. Uma vez que Bitcoin não é dinheiro de verdade, mas meramente uma nova forma diferente de empregar a moeda fiduciária existente, ele não pode substituí-la".
Contrariando Shostak, Bitcoin é um novo meio de troca, sim, ainda que não universalmente aceito. Ele é o que Mises classifica como dinheiro commodity. Mas não no sentido material como normalmente se entende, e sim no sentido de "dinheiro coisa" ou "dinheiro de fato" — exatamente nos termos de sua obra prima original em alemão, Theorie des Geldes und Umlaufsmittel (The Theory of Money and Credit). Dinheiro commodity em alemão é "Sachgeld" (sach=coisa, geld=dinheiro). Logo, como brilhantemente elucida Graf, "uma unidade bitcoin é o próprio meio de troca, é o dinheiro".
Já Nikolay Gertchev oferece uma crítica sob uma ótica distinta, alegando que "não podemos ter um dinheiro que dependa de outra tecnologia (internet)… Bitcoins jamais atingiriam o nível de universalidade e flexibilidade que o dinheiro material permite por natureza. Portanto, no livre mercado, dinheiro commodity, e presumivelmente ouro e prata, ainda tem uma vantagem comparativa". Será que Gertchev tem razão?
No próximo artigo trataremos dessa questão, buscando descobrir se o Bitcoin tem potencial para ser um meio de troca inclusive melhor que o ouro ou o papel-moeda fiduciário.
Artigo originalmente publicado em O Ponto Base
[1] Não faz parte do escopo desse artigo fazer uma descrição profunda e detalhada da tecnologia e da linguagem de programação do projeto Bitcoin. Ademais, encorajo aqueles que estão lendo sobre Bitcoin pela primeira vez que parem, assistam a alguns vídeos ou leiam artigos sobre o tema e retornem após deter um mínimo de conhecimento sobre Bitcoin. Indicações de leitura logo abaixo. Estou longe de ser especialista em linguagem de programação e na tecnologia que viabiliza esse projeto.
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