Sem ter como pagar aluguel, famílias ocupam propriedades que não foram vendidas também por causa da crise
Invasores dizem querer negociar aluguel com quem construiu; país tem mais de 3 milhões de imóveis vazios
MARÍA MARTÍN - FSPO pintor Carlos Antonio Leite, 33, acaba de inaugurar uma casa em Valdemoro, um povoado a 30 km do centro de Madri. É um chalé de 200 m², três andares, garagem, jardim e pátio avaliado em R$ 800 mil.
É o sonho de muitas famílias. Seria uma casa perfeita para morar com a mulher e os dois filhos, de quatro e nove anos --não fosse o fato de não ser dele e ainda não ter água nem luz.
Leite já não pode pagar seu aluguel e resolveu ocupar uma casa alheia. Junto com ele, chegaram outras 50 famílias, quatro delas brasileiras, que perderam suas casas e transformaram em lar meia centena de chalés como o de Leite.
Finalizados em 2008, quando estourou a crise na Espanha, apenas três deles foram vendidos. O resto ficou abandonado, pichado e foi alvo de ladrões que levaram até as torneiras. Os próprios vizinhos legítimos ajudaram as famílias a entrarem pela garagem.
"Eu trabalho, mas as coisas não estão bem. Quando vim para cá, há oito anos, ganhava € 2.000 por mês (R$ 5.200), mas agora não chego aos € 800 (R$ 2.000)", justifica Leite, que pagava um aluguel de € 500.
Antes da crise, os invasores de casas abandonadas eram jovens anarquistas. Neste último ano, com quase 6 milhões de desempregados, famílias até agora consideradas de classe média também começaram a ocupar.
Entre 2001 e 2011, a Espanha tornou-se líder na construção de moradias na Europa, erguendo quase 5 milhões de casas no período --um crescimento de 24%. Com a chegada da crise e a restrição do financiamento, porém, muitas nunca foram compradas, e outras nem sequer concluídas.
Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o país tem atualmente mais de 3 milhões de imóveis vazios.
O mecânico brasileiro Roberto, 50, é outro que ocupou um chalé com a família.
"Há um ano que estou sem emprego, sobrevivo de bicos e o salário de cozinheira da minha mulher é de só € 700. Pagando € 600 de aluguel, imagine o que a gente come?", conta Roberto, que não quis se identificar por esconder, há meses, sua situação da família no Brasil.
"Entrei porque estava aberto e abandonado, consertei tudo devagar. Não quero morar de graça; quero negociar com o proprietário para pagar um aluguel social", diz Roberto.
Procurado pela Folha, o responsável pela construção dos chalés não respondeu. Jornais espanhóis, contudo, dizem que ele estaria disposto a negociar um aluguel com os novos inquilinos. O que não se sabe é se o proprietário denunciará as famílias.
Como no Brasil, os invasores só podem ser despejados por ordem de um juiz. A saída depende de um processo judicial que pode demorar até dois anos.
Suicídios levam lei hipotecária ao centro do debate
MM - FSP
O caso dos chalés de Valdemoro ilustra a situação de muitas famílias na Espanha.MM - FSP
Na porta de um dos chalés, Ana, garçonete desempregada, conta: "Compramos apartamento em 2007 [por R$ 500 mil]. Conseguimos pagar por três anos hipoteca de € 890 (R$ 2.300) por mês, mas depois subiu para € 1.250 (R$ 3.200) e ficou impossível de assumir."
Na Espanha, quem não consegue pagar a hipoteca deve entregar a casa ao banco para saldar seu débito. Mas, na maioria dos casos, a dívida é altíssima --o valor da casa quando comprada é bem maior que o atual.
O casal Lúcia e Felipe tentou negociar, sem sucesso: "O banco leiloou e ninguém comprou. Ficamos sem casa e com dívida". "Não pode haver casa sem gente e gente sem casa", diz Rafael Mayoral, advogado da Plataforma Afetados pela Hipoteca.
Só depois de casos de suicídio a questão dos 500 despejos executados por dia em 2012 passou à linha de frente midiática e política. A PAH obteve 1,5 milhão de assinaturas para propor no Congresso a mudança da lei hipotecária, que muitos veem como abusiva.
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