Sérgio Telles - OESP
Multidões arregimentadas dispostas em grandes espaços. Imensos e
coreografados desfiles militares, nos quais os soldados se esmeram em exibir
passos sincronizados e gestos enfáticos. Estamos vendo imagens da Alemanha
nazista, da União Soviética stalinista ou da Guerra Fria, da China de Mao? Não.
São imagens atuais da Coreia do Norte.
O equívoco é justificável, pois apesar de expressarem convicções ideológicas e realidades socioeconômicas diferentes, esses rituais têm em comum o fato de serem manifestações típicas da forma totalitária de exercício do poder, que tem na manipulação das massas um de seus maiores trunfos.
A massa é um tipo especial de agrupamento humano que se constitui quando uma multidão se agrega, fortuita ou deliberadamente, em torno de uma atividade ou empreendimento comum.
Ao se diluir no meio dela, o indivíduo tem seu comportamento habitual modificado, pois ocorre uma regressão em sua organização psíquica, decorrente da perda transitória de sua identidade. Com isso, ele fica privado dos parâmetros internos que estabelecem a forma como vê a si mesmo, aos outros e a realidade externa. Dizendo de outra maneira, o indivíduo abdica de seu ideal do ego e de seu superego, projetando-os na própria massa ou no líder que a conduz e se identificando com os demais participantes da mesma. Dessa forma, ele se isenta da responsabilidade pessoal, delegando as decisões ao grupo ou ao seu líder, um representante da figura paterna a quem segue sem restrições. Nesse estado regressivo, podem ser liberados impulsos agressivos e sexuais que jamais seriam veiculados se o sujeito estivesse sozinho. De tudo isso, como mostraram Freud e Canetti, advém a inebriante sensação de poder e liberdade que sente o indivíduo no meio da multidão.
Esses fenômenos psicológicos próprios da massa mostram a plasticidade e fluidez do aparelho psíquico, que é capaz de transitar do funcionamento mais estruturado e organizado que possibilita o exercício do pensamento racional e objetivo para posições comandadas por uma afetividade mais arcaica.
Por darem vazão a incontornáveis desejos humanos, as massas tendem a se formar espontaneamente e estão presentes tanto nos regimes totalitários como nos democráticos, que as encaram de forma diferente. Nos regimes autoritários, o poder as incentiva, pois facilitam a doutrinação ideológica e o controle social. Nas democracias elas são formalmente desestimuladas e substituídas por grupos de indivíduos atuantes e conscientes.
Entretanto, os meios de comunicação tornam mais complexa essa equação, pois para que se instalem os pressupostos da psicologia das massas, com seus movimentos de submissão acrítica a um líder, não é necessária a presença física de participantes numa grande multidão, como em manifestações políticas totalitárias.
Os meios de comunicação, especialmente a televisão, organizam multidões virtuais muito maiores que as reais, possibilitando sub-repticiamente a instalação dos fenômenos regressivos típicos dessa condição.
Vendo televisão na privacidade de seu lar, o espectador não tem plena consciência de fazer parte naquele exato momento de uma grande massa e, como parte dela, reagir sem crítica aos ditames que lhe são impostos. Nos países autoritários, ele recebe passiva e diretamente sua cota de doutrinação. Nos países democráticos, lhe é fornecido o "entretenimento", essa proteica produção que, sem cessar, veicula conteúdos ideológicos, visando igualmente a tornar desnecessário o esforço de pensar e discriminar.
Os modelos de comportamento oferecidos pelos meios de comunicação (voltados prioritariamente para o consumo) são seguidos da mesma forma, como o é o líder totalitário da multidão real, presencial.
Fazer essa constatação não significa ignorar as diferenças e confundir o autoritarismo totalitário com a democracia. O que está em jogo é o reconhecimento da importância dos elementos psicológicos no comportamento das massas, a compreensão de que elas inconscientemente desejam o controle autoritário, a obediência a pais poderosos que as isentem do peso inerente à independência, à liberdade e responsabilidade.
Isso significa que, para se fortalecer, a democracia teria de batalhar em duas frentes. A mais óbvia, lutando contra os que querem se apossar do poder para exercê-lo ditatorialmente. Outra, mais insidiosa e difícil, criando defesas contra o anseio regressivo das massas por um líder autoritário.
Poder-se-ia perguntar: se há um líder autoritário que quer o poder e massas infantis que desejam ser por ele comandadas, por que não deixar que isso aconteça? A experiência do nazismo talvez seja a resposta mais cabal a essa questão. Atender a esses anseios regressivos de ambas as partes é dar livre curso à irracionalidade psicótica mais destrutiva.
Para superar esses perigos, a democracia deveria evitar as circunstâncias que proporcionem a formação de massas, quer seja na prática política, quer seja como efeito dos meios de comunicação. As massas dependentes deveriam ser substituídas por coletividades compostas por cidadãos autônomos e críticos, que não abram mão de seus direitos e responsabilidades e que exijam o mesmo de seus representantes. No que diz respeito aos meios de comunicação, o exercício da crítica permitiria a necessária discriminação entre os apelos da ideologia do consumo e o inestimável valor da liberdade de circulação de ideias e notícias.
Talvez não haja novidade nesse programa. Seria apenas uma versão atualizada do clássico embate entre demagogia e democracia.
Há muito tempo se sabe da infantilização das populações mais carentes, sempre a mercê dos espertalhões e populistas. O que vemos agora é que a situação é mais grave. A regressão das massas, que as deixam vulneráveis às manipulações de líderes inescrupulosos, não depende de fatores econômicos, sociais, educacionais. É algo mais profundo, que atende a fantasias inconscientes que se manifestam na psicologia dos grupos.
Essa é uma questão que não pode ser ignorada no aprimoramento dos dispositivos da democracia.
Caros Leitores. Em função das amplas mudanças editoriais ora em curso neste jornal, escrevo-lhes pela última vez neste espaço. Agradeço a atenção de todos e espero revê-los em outras páginas.
O equívoco é justificável, pois apesar de expressarem convicções ideológicas e realidades socioeconômicas diferentes, esses rituais têm em comum o fato de serem manifestações típicas da forma totalitária de exercício do poder, que tem na manipulação das massas um de seus maiores trunfos.
A massa é um tipo especial de agrupamento humano que se constitui quando uma multidão se agrega, fortuita ou deliberadamente, em torno de uma atividade ou empreendimento comum.
Ao se diluir no meio dela, o indivíduo tem seu comportamento habitual modificado, pois ocorre uma regressão em sua organização psíquica, decorrente da perda transitória de sua identidade. Com isso, ele fica privado dos parâmetros internos que estabelecem a forma como vê a si mesmo, aos outros e a realidade externa. Dizendo de outra maneira, o indivíduo abdica de seu ideal do ego e de seu superego, projetando-os na própria massa ou no líder que a conduz e se identificando com os demais participantes da mesma. Dessa forma, ele se isenta da responsabilidade pessoal, delegando as decisões ao grupo ou ao seu líder, um representante da figura paterna a quem segue sem restrições. Nesse estado regressivo, podem ser liberados impulsos agressivos e sexuais que jamais seriam veiculados se o sujeito estivesse sozinho. De tudo isso, como mostraram Freud e Canetti, advém a inebriante sensação de poder e liberdade que sente o indivíduo no meio da multidão.
Esses fenômenos psicológicos próprios da massa mostram a plasticidade e fluidez do aparelho psíquico, que é capaz de transitar do funcionamento mais estruturado e organizado que possibilita o exercício do pensamento racional e objetivo para posições comandadas por uma afetividade mais arcaica.
Por darem vazão a incontornáveis desejos humanos, as massas tendem a se formar espontaneamente e estão presentes tanto nos regimes totalitários como nos democráticos, que as encaram de forma diferente. Nos regimes autoritários, o poder as incentiva, pois facilitam a doutrinação ideológica e o controle social. Nas democracias elas são formalmente desestimuladas e substituídas por grupos de indivíduos atuantes e conscientes.
Entretanto, os meios de comunicação tornam mais complexa essa equação, pois para que se instalem os pressupostos da psicologia das massas, com seus movimentos de submissão acrítica a um líder, não é necessária a presença física de participantes numa grande multidão, como em manifestações políticas totalitárias.
Os meios de comunicação, especialmente a televisão, organizam multidões virtuais muito maiores que as reais, possibilitando sub-repticiamente a instalação dos fenômenos regressivos típicos dessa condição.
Vendo televisão na privacidade de seu lar, o espectador não tem plena consciência de fazer parte naquele exato momento de uma grande massa e, como parte dela, reagir sem crítica aos ditames que lhe são impostos. Nos países autoritários, ele recebe passiva e diretamente sua cota de doutrinação. Nos países democráticos, lhe é fornecido o "entretenimento", essa proteica produção que, sem cessar, veicula conteúdos ideológicos, visando igualmente a tornar desnecessário o esforço de pensar e discriminar.
Os modelos de comportamento oferecidos pelos meios de comunicação (voltados prioritariamente para o consumo) são seguidos da mesma forma, como o é o líder totalitário da multidão real, presencial.
Fazer essa constatação não significa ignorar as diferenças e confundir o autoritarismo totalitário com a democracia. O que está em jogo é o reconhecimento da importância dos elementos psicológicos no comportamento das massas, a compreensão de que elas inconscientemente desejam o controle autoritário, a obediência a pais poderosos que as isentem do peso inerente à independência, à liberdade e responsabilidade.
Isso significa que, para se fortalecer, a democracia teria de batalhar em duas frentes. A mais óbvia, lutando contra os que querem se apossar do poder para exercê-lo ditatorialmente. Outra, mais insidiosa e difícil, criando defesas contra o anseio regressivo das massas por um líder autoritário.
Poder-se-ia perguntar: se há um líder autoritário que quer o poder e massas infantis que desejam ser por ele comandadas, por que não deixar que isso aconteça? A experiência do nazismo talvez seja a resposta mais cabal a essa questão. Atender a esses anseios regressivos de ambas as partes é dar livre curso à irracionalidade psicótica mais destrutiva.
Para superar esses perigos, a democracia deveria evitar as circunstâncias que proporcionem a formação de massas, quer seja na prática política, quer seja como efeito dos meios de comunicação. As massas dependentes deveriam ser substituídas por coletividades compostas por cidadãos autônomos e críticos, que não abram mão de seus direitos e responsabilidades e que exijam o mesmo de seus representantes. No que diz respeito aos meios de comunicação, o exercício da crítica permitiria a necessária discriminação entre os apelos da ideologia do consumo e o inestimável valor da liberdade de circulação de ideias e notícias.
Talvez não haja novidade nesse programa. Seria apenas uma versão atualizada do clássico embate entre demagogia e democracia.
Há muito tempo se sabe da infantilização das populações mais carentes, sempre a mercê dos espertalhões e populistas. O que vemos agora é que a situação é mais grave. A regressão das massas, que as deixam vulneráveis às manipulações de líderes inescrupulosos, não depende de fatores econômicos, sociais, educacionais. É algo mais profundo, que atende a fantasias inconscientes que se manifestam na psicologia dos grupos.
Essa é uma questão que não pode ser ignorada no aprimoramento dos dispositivos da democracia.
Caros Leitores. Em função das amplas mudanças editoriais ora em curso neste jornal, escrevo-lhes pela última vez neste espaço. Agradeço a atenção de todos e espero revê-los em outras páginas.
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