A república do despudor
O Estado de S.Paulo
Hábito ancestral e nefasto que só piora com os exemplos
que vêm de cima, o despudor das autoridades brasileiras no trato da
coisa pública afronta diariamente uma sociedade que só não reage com a
indignação cabível porque - é a triste realidade - de algum modo ela se
mostra desgastada pela deterioração dos valores morais e éticos que
devem presidir a convivência social civilizada. Só isso pode explicar o
fato de o presidente do Senado e do Congresso Nacional, o notório Renan
Calheiros, permanecer no comando de um dos Poderes da República depois
de ter convocado cadeia nacional de rádio e televisão, no último dia 23,
para, entre outros floreios, vangloriar-se de austeridade nos gastos
públicos, poucas horas após ter reincidido na requisição irregular de um
jato da FAB, desta vez para viajar de Brasília ao Recife a fim de se
submeter a urgentíssimo implante capilar. Tanto com a intervenção
cirúrgica a que se submeteu quanto com o teor do pronunciamento que fez
poucas horas depois à Nação, o senador alagoano revela-se extremamente
fiel a um princípio que orienta a carreira dos políticos bem-sucedidos
"da hora": salvar sempre as aparências.
Mal o verdadeiro objetivo da viagem "oficial" do presidente do Senado
ao Recife veio a público, o próprio apressou-se em anunciar que
consultaria a FAB para saber se podia ou não ter requisitado o avião e
que, se fosse o caso, faria o devido reembolso aos cofres públicos. Por
inverossímil e absurdo que pareça, é isso mesmo: o chefe de um dos
Poderes da República, reincidente específico em casos dessa natureza,
que certamente dispõe de especialistas em qualquer assunto legal nos
quadros de sua ampla assessoria, achou que precisava perguntar à
Aeronáutica se podia ou não podia ter usado uma aeronave oficial para
melhorar sua aparência, inclusive com um retoque nas pálpebras
ligeiramente caídas. Seria uma piada de mau gosto, se não fosse um
escárnio à Nação que paga impostos e respeita as leis.
Renan Calheiros tem um retrospecto de conflito com o artigo 37 da
Constituição, segundo o qual a administração pública "obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência". Em julho último, já tinha ido de jatinho da FAB a Trancoso,
na Bahia, para a festa de casamento da filha de um colega do PMDB.
Quando a imprensa denunciou o abuso, mais do que depressa Calheiros
reembolsou a FAB em R$ 32 mil, antes mesmo de qualquer manifestação das
autoridades aeronáuticas. Mas parece não ter aprendido muito com a
experiência.
Muito pior do que essas lambanças aéreas, no entanto, foi o senador
alagoano ter sido forçado, em 2007, a renunciar à mesma presidência do
Senado que hoje ocupa, por causa das várias denúncias de corrupção de
que era alvo e que resultaram na apresentação, por seus pares, de seis
representações ao Conselho de Ética da Casa pedindo a cassação de seu
mandato. Renunciando à presidência da Casa, mas não ao mandato de
senador, Calheiros acabou sendo absolvido por seus pares de todas as
acusações que lhe eram feitas, inclusive a de que uma empreiteira pagava
polpuda pensão para o sustento de filho havido fora do matrimônio.
Mas, como já dissemos, o despudor é generalizado nos quadros da
administração pública e o exemplo vem de cima. Quando a presidente Dilma
Rousseff, movida pela ambição de permanecer no cargo e pela enorme
pressão de Lula e do PT, abandona a rotina de uma governança que não tem
enfrentado poucos problemas para atropelar o calendário e se concentrar
numa intensa agenda estritamente eleitoral, não só dá um péssimo
exemplo, como sinaliza que não há limites - nem os da lei eleitoral -
para os detentores do poder. O argumento para justificar a multiplicação
das viagens presidenciais por todo o País, com objetivos inegavelmente
eleitorais, foi dado recentemente pela ministra-chefe da Casa Civil da
Presidência, Gleisi Hoffmann: depois de quase três anos de operosa
gestão, chegou a hora de o governo "entregar" suas realizações à
população. O despudor, como se vê, não é monopólio de Renan Calheiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário