terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Para ajudar pacientes pobres, Índia quer abolir patentes de remédios contra câncer

Gardiner Harris - NYT
Lynsey Addario/The New York Times

Enfermeiras cuidam de Sudershan Talwar, paciente com câncer de mama, em Nova Deli, na Índia Enfermeiras cuidam de Sudershan Talwar, paciente com câncer de mama, em Nova Deli, na Índia
Alka Kudesia precisa de um medicamento caro para tratar seu câncer de seio, mas se recusa a dizer isso para seus filhos, por temer que eles façam empréstimos para comprar o remédio e passem o resto da vida endividados.
"Nós mal podemos pagar pelo tratamento que já estou recebendo", disse Kudesia, 48, com uma resignação tranquila. "Meus filhos estão começando na vida. Não quero ser um peso para eles."
O remédio, Herceptin, é um dos mais eficazes para uma forma agressiva de câncer de seio. Mas na Índia, ao custo de pelo menos US$ 18 mil por uma etapa do tratamento, somente uma pequena fração das mulheres que precisam dele o recebem.
O governo indiano ameaçou no ano passado permitir a produção de versões genéricas mais baratas do Herceptin. Seu fabricante, a Roche Holdings da Suíça, inicialmente resistiu, mas cedeu os direitos de patente este ano em grande medida porque concluiu que perderia uma ação nos tribunais indianos.
As desavenças sobre o Herceptin e outros medicamentos contra câncer fazem parte de uma nova fase crítica na longa luta para tornar os remédios acessíveis aos mais pobres do mundo, que começou para valer há mais de uma década, quando ativistas fizeram campanhas de sucesso para tornar acessíveis os remédios contra Aids para milhões de africanos.
"O câncer é a próxima questão HIV/Aids, e a luta apenas começou", disse Shamnad Basheer, professor de direito na Universidade Nacional de Ciências Jurídicas de Bengala Ocidental, em Calcutá.
As autoridades comerciais dos EUA manifestaram preocupações sobre o tratamento da Índia às patentes de medicamentos, incluindo seus motivos para às vezes desrespeitá-las. O presidente Barack Obama discutiu a questão no início deste ano com o primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, durante uma reunião na Casa Branca, segundo autoridades dos EUA.
Executivos da indústria farmacêutica internacional, que depende cada vez mais das vendas em mercados emergentes como Índia, China e Brasil, alegam que os esforços da Índia para cancelar patentes ameaçam o sistema global para descoberta de tratamentos, enquanto pouco fazem para resolver os desafios à saúde que a maioria dos pacientes enfrenta.
"Estamos abertos para discutir a melhor maneira de levar medicamentos inovadores aos pacientes", disse Daniel Grotzky, porta-voz da Roche, que tem uma grande carteira de medicamentos contra o câncer. "Mas uma sociedade que quer desenvolver novos remédios e tecnologia deve recompensar a inovação por meio de uma sólida proteção à propriedade intelectual."
Alguns especialistas em saúde dizem que investir em um diagnóstico precoce do câncer de seio e melhorar os testes, a cirurgia e o acesso à radioterapia é mais importante que o acesso a drogas caras.
"A quimioterapia não é a principal questão para o controle do câncer na Índia", disse o doutor Richard Sullivan, professor de política para o câncer e saúde global no Centro de Câncer Integrado King's Health Partners em Londres.
Mas ativistas de saúde dizem que argumentos semelhantes foram feitos pelo governo americano e a indústria farmacêutica quando buscavam proteger patentes sobre remédios para Aids durante a maior parte da década de 90, posição de que o ex-presidente Bill Clinton disse ter-se arrependido. Seria injusto retardar o aperfeiçoamento do acesso aos remédios contra o câncer até que o sistema de tratamentos na Índia fosse consertado, dizem eles. Eles notam que o número de pessoas que morrem de câncer por ano na Índia é mais que o dobro do das vítimas de Aids.
Enquanto o mundo fez progresso contra desnutrição e doenças infecciosas, mais pessoas vivem até idade avançada e morrem de doenças crônicas como doenças cardíacas e câncer, que hoje causam dois terços das mortes globalmente. Em 2012 houve 14,1 milhões de novos casos de câncer em todo o mundo e 8,2 milhões de mortes por câncer, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). E o número de casos de câncer de seio está aumentando. Cerca de 6,3 milhões de mulheres viviam com a doença no ano passado.
O aumento da incidência de câncer já é um grande peso para o sistema de saúde deficiente da Índia. As indianas, embora tenham menor probabilidade de contrair câncer de seio do que as americanas, têm uma probabilidade muito maior de morrer da doença. Cerca de 115 mil mulheres aqui são diagnosticadas com câncer de seio todo ano, e em 2008 aproximadamente 54 mil morreram da doença, segundo a OMS.
Nos cruzamentos de Nova Déli, mulheres carregando receitas de médicos pedem dinheiro para os tratamentos. A Índia tem apenas 27 centros de câncer públicos para 1,2 bilhão de pessoas. O governo prometeu acrescentar 50 nos próximos anos, mas especialistas médicos dizem que mesmo isso será amplamente inadequado.
A Índia, que é um dos principais produtores mundiais de medicamentos genéricos, há muito tempo vê com ceticismo os direitos de patentes de remédios. Ela já considerou inválidas as patentes que protegem as vendas exclusivas dos medicamentos anticâncer Gleevec da Novartis, Sutent da Pfizer e Tarceva da Roche. Em uma decisão notável em 2012, o governo concordou que a patente que protege o Nexavar da Bayer, também um remédio contra o câncer, era válida, mas a anulou de qualquer maneira porque uma companhia de genéricos prometeu reduzir o preço do tratamento mensal de US$ 4.500 para cerca de US$ 140.
O governo agora quer cancelar os direitos de vendas exclusivas de dois outros medicamentos contra o câncer. A Roche cedeu sua patente do Herceptin no início deste ano em parte porque considerou que era uma batalha perdida. Cada um desses passos foi recebido com aprovação na Índia e profunda reprovação de grupos empresariais, legisladores e laboratórios farmacêuticos dos EUA.
Uma comissão do governo indiano logo deverá anunciar o início de um processo formal para colocar de lado patentes de 15 outros remédios, segundo um membro da comissão que concordou em falar sobre deliberações secretas sob a condição do anonimato. Malini Aisola, da Fundação de Saúde Pública da Índia, disse que a lista completa "vai gerar comoção em todo o mundo".
Para os laboratórios, o aspecto mais preocupante dos esforços da Índia em reduzir os preços dos medicamentos é que outros países comecem a seguir seu exemplo. Tanto a Indonésia como as Filipinas adotaram recentemente leis de patentes baseadas nas da Índia, e legisladores do Brasil e da Colômbia propuseram medidas semelhantes.
"Uma das preocupações do setor não é apenas o que a Índia está fazendo na Índia, mas nós percebemos que o mundo inteiro está observando", disse Amy Hariani, do Conselho Empresarial EUA-Índia, que é afiliado à Câmara de Comércio dos EUA e combate as políticas de patentes indianas.
Para o governo Obama, a briga sobre as patentes de medicamentos no mundo em desenvolvimento é um campo minado. A indústria de medicamentos foi um grande contribuinte da campanha de Obama e um dos primeiros e cruciais apoiadores de seu programa de saúde. Mas assessores de Obama esperam evitar os erros do governo Clinton, que foi duramente criticado por ativistas da Aids por sua posição inicial contra fornecer drogas antirretrovirais genéricas para a África.
Cerca de 25 mil mulheres indianas se beneficiariam do tratamento com Herceptin por ano, mas no máximo 1.500 o recebem, segundo Kalyani Menon-Sen, uma defensora de pacientes em Nova Déli que liderou uma campanha por uma versão genérica.
Kudesia, temerosa de contar a seus filhos sobre o Herceptin por causa do custo, já tem problemas para pagar seu coquetel de medicamentos genéricos menos caros.
Para economizar, ela disse que agora deve deixar o apartamento de três quartos e US$ 80 mensais que divide com sua sogra e filho e vender a maior parte de suas posses. Comprar Herceptin está fora de questão. Ela reza para Krishna, Rama e outros deuses hindus por ajuda.
"Eu quero passar o resto do tempo que tenho resolvendo nossas dívidas, e não agravando-as", disse. "Não posso dizer a meus filhos que há outra droga que pode me ajudar."
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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