Entre Moscou e Bruxelas, a Ucrânia se contorce
SERGIO FAUSTO - O Estado de S.Paulo
Os eventos do último mês na Ucrânia - uma onda de
protestos contra a decisão do governo ucraniano de não assinar um acordo
de associação e livre-comércio com a União Europeia (UE) - compõem mais
um capítulo da disputa entre a Rússia e a Europa, por poder e
influência, naquela região do mundo.
A Cortina de Ferro tornou-se parte do entulho da guerra fria. Mas
continua distante - se é que chegará - o dia em que a Rússia e os países
europeus formarão uma "irmandade", sem prejuízo de suas "esplêndidas
diferenças", como vaticinou Vitor Hugo no século 19. Quando a União
Soviética se desfez em pedaços no final do século 20, o vaticínio do
romancista francês pareceu plausível. A primeira década do século 21,
porém, mostrou que o gigante eslavo não seria docemente europeizado.
Nesse período assistimos a dois movimentos simultâneos. De um lado, a
UE caminhando em direção às vizinhanças da ex-União Soviética. De
outro, a Rússia, sob o comando de Vladimir Putin, recuperando meios
econômicos e disposição política para manter sob sua órbita ao menos
parte do que sobrara do império soviético.
Até mergulhar em crise em 2008, a União Europeia levou a melhor nessa
disputa. Entre 2004 e 2007 incorporou como membros os países satélites
da União Soviética na antiga Europa Oriental (Polônia, Hungria, etc.) e
três ex-Repúblicas soviéticas do Mar Báltico (Lituânia, Estônia e
Letônia).
Com a crise do euro, a UE perdeu o ímpeto para incorporar novos
membros. Ainda assim, em 2009 lançou uma nova iniciativa a leste. A
Eastern Partnership não visa a incorporar novos membros, mas a firmar
acordos de cooperação e livre-comércio com países que se espremem entre
os fundos da Europa e a frente da Rússia (Ucrânia, Bielo-Rússia e
Moldávia), além de três países do Cáucaso (Geórgia, Armênia e o
Azerbaijão).
Com uma população e um PIB várias vezes maiores que os demais, a
Ucrânia é, de longe, o mais relevante desses seis países. Além da
importância econômica, é politicamente estratégica: abriga a principal
base naval russa no Mar Negro e serve de passagem para a maior parte dos
gasodutos que abastecessem a Europa com energia proveniente da Rússia.
A despeito das pressões russas em contrário, as negociações da UE com
a Ucrânia avançaram ao longo dos últimos quatro anos (com a pequena
Geórgia e a ainda menor Moldávia também). Passo decisivo para a
assinatura dos acordos estava previsto para os dias 28 e 29 de novembro
último, no terceiro encontro de cúpula da Eastern Partnership. Geórgia e
Moldávia confirmaram as expectativas. Já a Ucrânia deu marcha à ré,
apesar dos apelos de última hora dos líderes europeus, desencadeando a
onda de protestos em Kiev.
Moscou não tem poupado esforços para manter as ex-Repúblicas
soviéticas girando em sua órbita. Já tendo perdido três delas, teme que
outras se desgarrem pela via dos acordos de cooperação e livre-comércio e
receia a influência islâmica nas ex-Repúblicas da Ásia Central
(Casaquistão, Usbequistão, etc.), porque o islamismo penetra no
território russo, especialmente na Chechênia.
Nos últimos anos a Ucrânia experimentou quase todas as formas de
coação, em especial relacionadas à quantidade e ao preço do gás
fornecido pela Rússia, o principal parceiro comercial do país (70% do
gás consumido na Ucrânia provém da Rússia). Nos meses mais recentes a
pressão se intensificou. Os russos bloquearam a entrada de exportações
ucranianas (30% delas têm como destino a Rússia) e mostraram-se
inflexíveis na renegociação de dívidas do país com a Gazprom, gigante
estatal russa do setor petrolífero.
Ao mesmo tempo, em contraposição à oferta da UE, Putin acena com o
ingresso da Ucrânia na União Aduaneira Eurasiana, à qual o presidente
russo pretende incorporar todas as ex-Repúblicas soviéticas, com exceção
das três que já aderiram à UE. A proposta de adesão ao bloco econômico
comandado pela Rússia não representa contrapeso suficiente à oferta
europeia. Porém surge acompanhada de um pacote de punições e prêmios de
efeito imediato sobre a vulnerável economia ucraniana. Nos últimos dias,
em lance decisivo, Putin anunciou a compra de US$ 15 bilhões em títulos
públicos da Ucrânia e uma redução drástica do preço do gás importado
pelo vizinho. Uma ajuda vital para um país com elevado déficit em conta
corrente, poucas reservas internacionais e quase nenhum acesso ao
mercado de capitais internacional.
A assinatura do acordo com a UE representaria pequeno alívio imediato
a essa situação e implicaria o cumprimento de compromissos em matéria
de democracia, direitos humanos e aplicação não seletiva da lei. Prato
indigesto para um governo com tendências autoritárias, que mantém na
cadeia a principal líder da oposição e está enredado em práticas
obscuras no mundo dos negócios. É verdade que o acordo facilitaria um
eventual socorro financeiro do FMI. Mas esse também teria um custo: a
adoção de reformas econômicas a que o governo ucraniano resiste.
As preocupações geopolíticas não movem os manifestantes que carregam
bandeiras da União Europeia na Praça da Independência em Kiev, aos
gritos de "Yevropa!". A maioria é formada por jovens com alto nível de
educação, fartos do autoritarismo, da corrupção e da falta de
oportunidades em seu país. Apesar da crise e do ressurgimento do
nacionalismo xenófobo, a Europa oferece-lhes uma perspectiva menos
sombria para o futuro. Já na Rússia, sob Putin, o que veem é a
consolidação de uma aliança antiliberal entre o Kremlin e a Igreja
Ortodoxa, um amálgama de autoritarismo estatal e conservadorismo
eclesiástico.
A dura realidade, todavia, é que no curto prazo a Ucrânia não tem
como livrar-se do abraço apertado do urso que mora ao lado. Tampouco
poderá o governo manter o status quo. Novos capítulos à vista em 2014.
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