Embuste ideológico
DENIS LERRER ROSENFIELD - O Estado de S.Paulo
O grotesco assassinato político de Jang Song-thaek, tio e
mentor político de Kim Jong-un, líder máximo da Coreia do Norte, não
deixa de ser, digamos, "normal", dada a característica stalinista de seu
regime político. Nada diferente do que a esquerda totalitária fez na
extinta União Soviética, nos hoje amplamente conhecidos Processos de
Moscou, que eliminaram a velha-guarda bolchevique.
Em outro célebre episódio, Trotski primeiro foi apagado de uma foto
com Lenin numa comemoração revolucionária para depois ser "apagado" com
uma machadada na cabeça, no México. Quem perpetrou o assassinato foi um
agente de Stalin, Ramón Mercader, que acabou placidamente seus dias em
Cuba, com todos os privilégios da Nomenklatura castrista. Nada distinto
do que Mao fez na China. Os camaradas, amigos de ontem, viravam
inimigos, tachados de contrarrevolucionários a serviço do capitalismo.
No Brasil ainda há quem admire Marighella e a guerrilha do Araguaia,
que compartilhavam as mesmas concepções marxistas. Em todos esses casos,
uma patológica perversão das ideias.
O assassinato político tornou-se uma forma "corriqueira" de a
esquerda resolver seus conflitos intestinos. Processos jurídicos de
fachada, tortura, acusações infundadas e mortes eram características
próprias da esquerda no poder. Não há sequer uma experiência histórica
de compatibilização entre socialismo/comunismo e democracia. Lá onde o
socialismo vingou, a democracia jamais germinou. Cuba e Coreia do Norte
são rebentos desse período.
Se tomarmos a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, teremos uma
oportunidade rara de comparação entre socialismo e capitalismo. O
capitalismo sul-coreano produziu uma sociedade próspera, com alto grau
de desenvolvimento industrial, científico e tecnológico. Empresas e
universidades lá se retroalimentam. Sua educação tornou-se referência
mundial. A democracia é o seu regime político. Já a Coreia do Norte é um
regime tirânico, liberticida, que reduz sua população a uma vida
miserável. A fome grassa e os servos desse país sucumbem à falta de
alimentos. Nada funciona, a não ser o Exército, dotado de armamento
nuclear, usado como ameaça constante à Coreia do Sul. Seus processos
políticos são uma caricatura, tendo sido nesse país instaurada uma
monarquia comunista, com direito de hereditariedade!
O século 20 apresentou outra experiência altamente significativa. Só
os tolos hesitam em extrair dela seu ensinamento. Havia duas Alemanhas, a
Ocidental, capitalista, e a Oriental, socialista. A primeira
caracterizava-se pela pujança, pelo respeito às liberdades, por uma vida
sindical forte, um crescimento econômico notável e condições sociais
invejáveis. Sua indústria tornou-se um exemplo mundial. Veio a ser uma
das maiores economias do planeta. A segunda tinha como característica
central a dominação violenta de sua população, com uso do partido e de
sua polícia política. Suas condições sociais eram precárias e a
liberdade, sistematicamente pisoteada. Tais eram seus problemas que o
socialismo sucumbiu às suas próprias contradições. Nem os prussianos
resistiram ao socialismo. A queda do Muro de Berlim foi um símbolo da
derrocada socialista/comunista. A ideia socialista esborrachou-se no
chão.
A esquerda tupiniquim, porém, teima em nada aprender. Parafraseando
Talleyrand, discorrendo sobre a aristocracia emigrada, que se obstinava
em não reconhecer os eventos revolucionários, "eles nada aprenderam e
nada esqueceram". Para essa esquerda, o socialismo continua plenamente
vigente, sendo superior ao capitalismo, compreendido como fonte de todos
os males. Trata-se de uma visão religiosa: o capitalismo é o pecado, o
mal sobre a Terra, a origem do egoísmo e do lucro, enquanto o socialismo
seria a redenção da humanidade, a solidariedade enfim conquistada entre
os homens.
O embuste consiste no seguinte: o capitalismo não é comparado ao
socialismo. Se isso fosse feito, a comparação, por exemplo, deveria ser
entre a Alemanha capitalista e a socialista, ou, ainda, entre a Coreia
capitalista e a socialista. Os termos da comparação teriam parâmetros
que serviriam de critério para qualquer avaliação.
A "comparação" é de outro tipo. Compara-se o capitalismo real,
existente, com a ideia do socialismo, forjada pelos que lhe atribuem
todas as perfeições. Ou seja, atribuem-se ao socialismo todas as
perfeições e se passa, então, a verificar se elas "existem" no
capitalismo. Isso é equivalente a comparar uma sociedade perfeita a uma
imperfeita, ou a comparar o homem a Deus. É claro que o homem, com suas
imperfeições, sairá sempre perdendo quando comparado a Deus. O mesmo
destino teria a comparação entre uma sociedade perfeita (ideal) e uma
imperfeita (real).
Mais curiosa ainda é a afirmação de alguns segundo os quais haveria
plena compatibilidade entre socialismo e democracia, quando isso não se
verificou historicamente em nenhum lugar. O socialismo no poder
caracterizou-se pela tirania totalitária. O "pensamento" esquerdista, se
é que se pode utilizar essa palavra, é totalmente capturado pelo dogma,
esse repouso dos que se recusam a pensar. É o mundo das ideias
descontroladas, que não podem ser verificadas empiricamente. Ora, só
onde o capitalismo prosperou é que a democracia representativa foi
consolidada e os cidadãos puderam usufruir a liberdade.
Há uma mentalidade religiosa, teológico-política, que guia a esquerda
tupiniquim. Vive de "preconceitos" contra a economia de mercado e o
direito de propriedade, postulando, como se fosse uma coisa teoricamente
séria, a "utopia" ou o "socialismo" enquanto ideias "superiores" ao
capitalismo. Na ausência de conceitos, contenta-se com diatribes contra o
"neoliberalismo" e outras patranhas do mesmo tipo, como se fazer
política residisse só em enganar o próximo, em abusar da inteligência
alheia.
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