Onde
quer que tenha surgido uma classe intelectual e dirigente capaz, apta
para as mais altas tarefas da inteligência e da vida política, a
educação que a preparou seguiu em linhas gerais o modelo grego.
Platão
aprovava o adestramento dos jovens na técnica dos debates, mas achava
que o modo pelo qual os sofistas a ensinavam arriscava corromper os
alunos, viciando-os em contestar tudo e qualquer coisa e fazendo deles
discutidores vazios que, confiantes no poder ilimitado da refutação,
acabavam por não acreditar mais em nada. Tornavam-se contestadores
cínicos e carreiristas amorais:
“Os
muito jovens, quando tomam gosto pelas argumentações, usam delas como
de um jogo, recorrendo a elas sempre com um intuito de controvérsia, e, a
exemplo daqueles que os refutaram por completo, eles mesmos refutarão
outros, obtendo prazer, como cãezinhos novos, em nos puxar e dilacerar
com argumentos, cada vez que nos aproximamos deles... Quando, no
entanto, houverem refutado um grande número de pessoas e grande número
de pessoas os tiver refutado com uma queda brutal e rápida, ei-los que
chegam a não acreditar em mais nada daquilo em que acreditavam antes.
Ora..., o homem de mais idade não consentirá em tomar parte nesse
delírio, mas imitará antes aquele que consente em dialogar e em buscar a
verdade, em vez de imitar aquele que, na controvérsia, joga um jogo
pelo prazer de jogar.” (A República, VII, 539 b2-c8.)
A
arte de fazer da discussão um método para a investigação da verdade em
vez de um simples jogo ou de um meio de subir na vida, foi precisamente o
que Sócrates introduziu na educação grega e que Platão aperfeiçoou sob o
nome de dialética. O público que se dirigia a Sócrates para
aprender essa arte não se constituía, pois, de crianças nem de
adolescentes, mas de adultos jovens e mesmo não tão jovens que já haviam
passado pelas duas etapas iniciais da educação grega: a formação
literária e artística e o adestramento para as discussões públicas. Com
Sócrates eles aprendiam um tipo de discussão em que já não se tratava de
vencer um adversário, mas de confrontar idéias e hipóteses diversas e
conflitantes com a finalidade de encontrar os princípios comuns que
davam a razão de todas elas e assim avançavam um passo em direção à
verdade do objeto discutido. Esse exercício era tão alheio à busca de
vitórias sofísticas, que tanto podia ser realizado em grupo quanto
individualmente, tanto em voz alta como em pensamento.
Aristóteles
apreciava a dialética socrático-platônica e a empregou abundantemente
nas suas investigações filosóficas, julgando-a mesmo o único instrumento
científico viável nos assuntos novos e inexplorados, onde não se dispõe
de nenhum princípio ou premissa geral e se trata precisamente de
buscá-los pela primeira vez. A sistematização aristotélica da dialética
no livro dos Tópicos constitui, historicamente, a primeira formulação geral daquilo que mais tarde viria a chamar-se “método científico”.
No
entanto, Aristóteles descobriu que no fundo das confrontações
dialéticas existia um critério subjacente, não formulado, para a
aferição da coerência dos discursos. Toda discussão dialética visava a
encontrar as premissas, os princípios fundantes para o estudo desta ou
daquela questão, premissas ou princípios dos quais se pudesse então
tirar conclusões válidas. Mas, de um lado, a dialética não tinha por si
nenhum meio de distinguir se essas premissas eram absolutamente
verdadeiras ou eram apenas mais razoáveis do que aquelas das quais a
discussão havia partido. De outro lado, todo o esforço dialético era
guiado por um ideal de coerência discursiva que a própria dialética não
chegava a explicitar. O que Aristóteles fez foi então tornar explícitas
as exigências contidas nesse ideal e formular o conjunto de regras que
se devia seguir para atingi-lo. Foi essa arte que ele denominou analítica, mais tarde chamada “lógica”.
Aristóteles ensinava essa arte no Liceu, a escola que ele fundou e que era uma espécie de upgrade
especializado da Academia platônica. Os alunos que vinham aprender
lógica com ele já chegavam, portanto, com todo o preparo que haviam
recebido nas três etapas anteriores: a formação literária e artística, o
adestramento sofístico para as discussões públicas e a dialética
socrático-platônica.
Essa
breve narrativa mostra que tanto a história da evolução da educação
grega quanto a gradação das etapas do aprendizado seguido por cada novo
aluno já continham, implicitamente e na prática, a escala dos graus de
credibilidade que Aristóteles formularia na sucessão dos discursos
poético, retórico, dialético e lógico-analítico, à qual dei o nome de
“teoria dos quatro discursos”. Essa coincidência de escalaridade entre a
evolução histórica de uma cultura e a estrutura das etapas do
aprendizado em cada aluno individual sugere que a ordem interna da
educação grega é mesmo um modelo ideal, no sentido em que sugeri acima.
Onde
quer que tenha surgido uma classe intelectual e dirigente capaz, apta
para as mais altas tarefas da inteligência e da vida política, a
educação que a preparou seguiu em linhas gerais o modelo grego. A
administração colonial britânica é um exemplo. A série quase inteira dos
presidentes americanos é outro. A partir do momento em que as escolas
negligenciam a transmissão dos valores universais e permanentes e caem
na esparrela de querer infundir nas crianças o culto do que é mais
recente e passageiro – sob o nome pomposo de “conquistas avançadas da
ciência e da técnica” ou qualquer outro – o resultado é sempre
decadência, barbárie, estupidez generalizada. A educação brasileira é o
exemplo mais nítido.
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