Corrupção, essa irresistível
O Estado de S.Paulo
"... temos enfrentado dificuldades em mudar o sistema
político brasileiro, verdadeira camisa de força que impede
transformações mais profundas e impõe um 'presidencialismo de coalizão'
que corrói o conteúdo programático da ação governamental." Não, não se
trata de excerto de um documento subscrito por forças que se opõem ao
governo do PT. O eventual equívoco decorrerá da omissão do início da
frase, que elimina qualquer dúvida: "Desde 2003, sobretudo, temos
enfrentado dificuldades..." Sim, é um documento do Partido dos
Trabalhadores, que diz mais: "... o partido é ainda prisioneiro de um
sistema eleitoral que favorece a corrupção e de uma atividade
parlamentar que dificulta a mudança". Que triste!
Essa pungente confissão de rendição às forças do mal, as mesmas que
durante mais de 20 anos prometeram dizimar com destemor, é de tal modo
falsa que sugere uma pergunta óbvia para Lula, Dilma e companheirada:
afinal, por que esperaram 10 anos para condenar a corrupção que os
transformou em "prisioneiros" (e não é que é verdade?), para profligar o
"presidencialismo de coalizão" do qual sempre se gabaram e para
repudiar "uma atividade parlamentar que dificulta a mudança"? A resposta
também é óbvia: porque há 10 anos os petistas de Lula estão
comprometidos até o pescoço, numa ação mútua de cooptação, com os mais
notórios representantes do que há de pior no Congresso Nacional; com as
lideranças retrógradas que se alimentam da corrupção, exigem "coalizão"
para se locupletarem no exercício do poder e comandam uma "atividade
parlamentar" que não quer saber de mudança porque acha tudo muito bom
como está.
Essas "reflexões" serão oferecidas a debate no 5.º Congresso do PT,
que se reunirá em meados de dezembro em Brasília. Conclaves políticos
dessa natureza se destinam, por definição, à discussão de questões
programáticas. Parece claro, no entanto, como se pode inferir do
documento preparado por Marco Aurélio Garcia, que mais do que tratar de
programas os petistas estão preocupados no momento em neutralizar os
reflexos negativos do escândalo do mensalão e da prisão de seus
figurões. Vão partir, portanto, para o ataque - sua melhor arma de
defesa -, mais uma vez potencializando a síndrome de perseguição com a
qual estimulam, até agora com grande êxito, o processo de sua
identificação com as chamadas massas populares. É assim que o populismo
funciona.
Há, porém, uma outra questão curiosa que o documento petista suscita,
principalmente quando associada à recente e inesperada atitude de Lula
de atacar com violência o Poder Judiciário e o presidente do Supremo
Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, por conta da condenação e da prisão
de seus companheiros José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares. "Parece
que a lei só vale para o PT", reclamou, em evento político em Santo
André.
Lula vinha adotando nos últimos meses uma postura discreta e
cautelosa a respeito do julgamento do mensalão. Segundo sua própria
avaliação repassada aos comandos do PT e à presidente Dilma Rousseff, o
melhor no momento seria minimizar o assunto, para que ele caia no
esquecimento o mais rápido possível e não contamine o debate eleitoral
do ano que vem. Mas isso era o que se dizia nos círculos petistas antes
da prisão de sua elite. Depois disso, até por causa dos problemas de
saúde de Genoino, a reação às prisões por parte de lideranças mais
próximas dos encarcerados e da militância foi-se tornando a cada dia
mais emocional e ruidosa.
José Dirceu, que jamais se conformou com a maneira "conciliatória"
como entende que Lula sempre tratou o assunto, depois de preso teria
radicalizado essa postura e cobrado duramente do ex-presidente, por meio
de amigos comuns, uma manifestação clara de solidariedade aos
prisioneiros. Aparentemente, agora teve sucesso, pois, além do discurso
de Lula no ABC paulista, o PT, contrariando decisão anterior de ignorar
oficialmente o assunto, teria decidido prestar solidariedade aos
condenados na abertura do congresso do partido, dia 12 de dezembro.
Faz sentido. Afinal, se o PT é vítima de instituições corruptas,
vítimas também são seus bravos dirigentes que enfrentaram "dificuldades"
para resistir à corrupção.
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