Gigantesca delegacia de polícia
GAUDÊNCIO TORQUATO - O Estado de S.Paulo
Falcatrua, maracutaia, acochambração, artimanha,
trapaça. As cinco sonoras palavras, que agasalham o corpo de nossa
cultura, nunca deixaram o pano de fundo dos relatos que dão conta da
vida social e política do País. Nos últimos tempos, porém, ecoando
locuções em defesa e ataque de contendores que se preparam para disputar
o campeonato eleitoral de 2014, frequentam com maior intensidade a
agenda de manobras erráticas na administração pública. A sensação é
inequívoca: o Brasil mais parece uma gigantesca delegacia de polícia.
De maneira proposital, atores variados tentam confundir o terreno da
ilicitude com o espaço da licitude, o certo com o errado, em aparente
estratégia de defesa de interesses de pessoas e grupos. Ao final dessa
tentativa de embaralhar as cartas do jogo político, todos perdem: atores
individuais e institucionais. A impressão que fica é a de que a disputa
eleitoral, neste final de ano, dá o tom maior do discurso, abrindo
espaço para acusações e retaliações e expandindo a desconfiança social
nos Poderes constituídos.
Vejamos exemplos, a começar pela questão da saúde do deputado José
Genoino, paciente com problemas cardíacos a merecer cuidados. A
espetacularização montada em torno do caso conferiu ao ex-presidente do
PT a imagem de vítima que deve ganhar solidariedade. O contraditório
formado mostra, de um lado, ele, José Dirceu e Delúbio Soares como
"presos políticos", conforme se lê em faixa de um grupo de sem-terra
dissidente do MST; de outro, que "foram julgados e cumprem penas por
condutas políticas", no dizer do petista Olívio Dutra, ex-governador
gaúcho. Laudo clínico produzido por cinco cardiologistas da Universidade
de Brasília atesta que Genoino "é portador de cardiopatia que não se
caracteriza como grave", não necessitando permanecer em prisão
domiciliar. O STF dará a palavra final, mas é evidente que o processo de
vitimização não terminará com o veredicto. O imbróglio foi despejado na
cúpula da Câmara dos Deputados, à qual caberá a decisão de conceder
aposentadoria por invalidez ao parlamentar. Caso concedida, ele se
livraria do processo de cassação, não sem suspeitas de acochambração.
Dirceu foi contratado por um hotel de Brasília para trabalhar como
gerente, sob uma chuva de críticas. Em regime semiaberto, o detento pode
sair de manhã e voltar no fim da tarde à prisão. A polêmica se instala
pela inusitada decisão de um perfil portentoso do PT vir a gerenciar um
estabelecimento hoteleiro. Ora, não há impedimento legal para que amigos
façam um contrato de trabalho com ele. Possivelmente os contratantes
(com sua ética) viram nele instrumento de marketing para alavancar
vendas.
Versões de um lado e de outro, com novas acusações de produção de
dossiês, aparecem no caso dos trens em São Paulo, forma de atenuar o
impacto da prisão de mensaleiros. O assunto alimenta ódios e paixões
entre adversários e admiradores.
E o que esperar da decisão do STF de julgar em 2014 a
constitucionalidade dos planos econômicos editados nas décadas de 1980 e
1990? Parlamentos de sistemas democráticos convivem bem com a
influência dos Poderes Executivos, particularmente no que concerne à
aprovação de normas voltadas para o aperfeiçoamento de seu desempenho
(funcional, financeiro, contábil, etc.). Já o exercício do lobby sobre o
Poder Judiciário tem sido cauteloso, por este simbolizar a balança da
justiça. No caso dos perdedores da poupança, tal preocupação de assédio
inexiste. Já autoridades passaram a abordar os ministros do Supremo com
um discurso catastrófico: o sistema financeiro ameaça desmoronar; R$ 150
bilhões de desembolso dos bancos poderiam chegar a R$ 600 bilhões com a
cobertura a todos os poupadores, não apenas aos que entraram com
processos. Mas o Instituto de Defesa do Consumidor apresenta uma conta
de cerca de R$ 8,4 bilhões.
O caso será emblemático. O STF já julgou ações e estabeleceu
parâmetros sobre a feição jurídica do sistema monetário e qualquer
decisão terá forte repercussão, eis que se ouvirão o barulho de um
contingente que há 20 anos espera a decisão e a voz forte do Estado em
defesa do status quo bancário. S. Exas. aprovarão as fórmulas usadas
para calcular a correção da poupança? Os bancos ganharão? Eventual
reversão das expectativas sociais terá consequências eleitorais? Como se
vê, nem o Judiciário escapa ao cerco do jeitinho brasileiro de ser.
Manobras para deixar as coisas conformadas ao patamar das
conveniências invadem também o painel das estatísticas nacionais. A
maquiagem de índices de crescimento e contas públicas é recorrente. No
momento a polêmica gira em torno da reavaliação do PIB de 2012, que
teria passado de 0,9% para 1,5%, apesar de o IBGE não ter divulgado a
revisão. Como pano de fundo, a proximidade do fim de mandato do governo
Dilma e a comparação com administrações anteriores. E haja pressão para
mudança de metodologia! Dados recorrentes passíveis de correção são os
do balanço do PAC, mostrando, de um lado, cronogramas dentro do prazo e,
de outro, obras empacadas, como a transposição do São Francisco e a
Transnordestina, a par de projetos com cara de interrogação, como o do
trem de alta velocidade, suspenso em 2011.
Para completar, o TCU suspendeu concurso do Ministério do
Planejamento por suspeita de favorecimento a indicados políticos. Ufa! O
que esse painel tortuoso mostra sobre o País? Escancara a evidência de
que a ausência de eficiente institucionalização política é o motor da
corrupção. Os papéis institucionais acabam subordinados a demandas
exógenas. A modernização, que deveria puxar nova escala de valores, a
partir da meritocracia, abre fontes de riqueza, fazendo ascender novos
grupos, os quais, por sua vez, acumulam recursos para escalar os degraus
do poder.
O Brasil novo teima em vestir o manto roto do passado.
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