O ano que não terminou
MARCO AURÉLIO NOGUEIRA* - O Estado de S.Paulo
Um ano como 2013, que conheceu protestos do porte dos de
junho, não poderia terminar como começou. Não poderia, mas à primeira
vista foi o que ocorreu.
As ruas de junho falaram muitas coisas. Suas vozes verbalizaram uma
insatisfação que não se imaginava presente no País, cantado em verso e
prosa como em franco processo de expansão da renda e do consumo, dando
passos de gigante para a frente e prestes a se tornar um dos grandes do
mundo. Potencializadas pelas redes sociais, turbinadas pela violência
policial e pegando todos de surpresa, as vozes fizeram-se ouvir. Os
prefeitos das capitais cancelaram os aumentos da tarifa do transporte
urbano, um dos estopins da mobilização. A presidente convocou cadeia de
rádio e TV, disse "estou ouvindo vocês" e acenou com cinco pactos
políticos para começar a responder às ruas. O gesto inteligente revelou
iniciativa, mas pouco produziu de concreto. Dele sobrou somente o
Programa Mais Médicos, que se ajustou bem ao cenário nacional e ajudou o
governo federal a recuperar parte da popularidade perdida. O programa
que poderia ter sido o carro-chefe da recuperação do SUS, porém, ficou
no meio do caminho. Queimou-se uma oportunidade.
É fácil criticar os governos e constatar que eles não souberam reagir
às ruas de junho. Mas os governos, que têm seus déficits próprios -
técnicos, políticos, operacionais -, são estruturas integradas ao
sistema político, dependentes dele, não tendo como ser muito melhores do
que ele. E no Brasil o sistema é ruim demais. Falta-lhe quase tudo o
que se espera de um organismo que existe para funcionar como esteio da
democracia política e ponte pela qual trafeguem e sejam processadas as
demandas e aspirações populares. O sistema prejudica os governos,
bloqueando eventuais predisposições que gestores possam ter de abrir
canais de negociação com a sociedade.
O padrão, o volume e a forma de expressão das demandas também
determinam a qualidade das respostas governamentais. Houve um pouco de
tudo nas ruas de junho, mas não houve quem dispusesse as diferentes
reivindicações numa agenda que pudesse ser traduzida politicamente e
determinasse as ações governamentais. O próprio movimento das ruas não
mostrou particular capacidade ou interesse de dialogar com o poder:
denunciou o que não está bom, mas não indicou caminhos para mudar. Teve
caráter mais explosivo e espasmódico do que construtivo. A velocidade e a
expressividade foram sua marca, não a paciência ou a "guerra de
posição". Ao depararem com um muro de silêncio no Estado, os protestos
dispersaram-se e o que sobrou acabou por se confundir com escaramuças
mais agressivas e violentas.
O ano de 2013 mostrou que as relações entre o Estado (governos e
sistema político), o mercado e a sociedade civil estão carentes de
encaixe e de coordenação. O poder de agenda de cada um desses polos é
desigual: sobra no mercado, falta no Estado e na sociedade civil. Há
mais competição e luta pela vida que política. Não espanta que tudo
pareça solto, sem rumo, fora de controle.
Passado o primeiro choque, o sistema político recompôs-se e o País
submergiu no ritmo irritante de antes. Mostrou-se perigosamente
indiferente às ruas, como se estivesse a alimentá-las e a pedir que
voltem a agir. Não dialogou com elas, não decodificou seus sinais, não
demonstrou nenhuma capacidade de iniciativa e interação. Deu-se o mesmo
com os governos. O mundo institucional permaneceu fechado ao mundo
social.
Os motivos, as pulsões e as circunstâncias que levaram milhões de
brasileiros às ruas em junho permanecem intocados. Na ausência de
respostas do sistema político, de providências governamentais e de
ganhos organizacionais dos próprios manifestantes, as ruas refluíram e
hibernaram. Mostraram sua juventude, sua forma política surpreendente,
seu ativismo midiático que se vale de redes sociais e celulares. Não
encontraram pontes e braços que as projetassem para o centro do Estado,
porque os que estão no Estado não conseguem sentir as ruas e quem está
nas ruas não acredita que o Estado esteja interessado em ouvir ou
dialogar. As ruas hibernaram, mas permanecem vivas, em condições de
mobilização latente, fiéis ao mix de hipermodernidade, injustiça e caos
que as qualifica.
Por isso, quando saímos da primeira percepção, constatamos que 2013
não terminou do mesmo modo: foi contagiado pelos protestos de junho,
ainda que o sistema político não se tenha dado conta disso. O ano, a
rigor, não terminou, pois aquilo que o distinguiu fez com que ele se
projetasse, invadisse e condicionasse o ano novo, transferindo para ele
um bom lote de questões não resolvidas.
É ilusório achar que a bonança prevalecerá depois da inesperada
tempestade. A insatisfação de parte expressiva da população mistura-se
hoje com a resignação tradicional e com um encantamento submisso ao
poder do Estado. A combinação dessas três vertentes político-culturais -
a insatisfação, a resignação, o encantamento - é nitroglicerina pura.
Desaguará de algum modo nas eleições de 2014.
Isso não quer dizer que as urnas do próximo ano beneficiarão as
oposições. Antes de tudo, porque as oposições seduzem pouco, não
inspiram confiança, não sugerem um futuro diferente. No meio delas,
porém, há dinâmicas de novo tipo, que poderão cumprir importantes
funções de oxigenação e democratização. Uma eventual vitória
situacionista não será mero prolongamento da situação atual. A
conservação das posições políticas não significa estagnação política,
especialmente se se levar em conta a alta taxa de problemas do País e
tudo o que nele se mexe.
O ano que desponta trará consigo novas oportunidades para que se
recomponham as relações entre Estado e sociedade. 2013 está prestes a
acabar, mas não a terminar, a não ser no calendário. No chão da vida,
continuará pulsando, a invadir 2014.
Bom ano-novo para todos.
*PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E DIRETOR DO INSTITUTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNESP
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