Sebastian Fischer - Der Spiegel
1º.mar.2013 - AFP
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, durante anúncio dos cortes automáticos de US$ 85 bilhões nos gastos públicos, no início de março
A dor do sequestro tem sido suportável até agora, mas isso mudará em breve. Nos próximos meses, milhares de americanos sofrerão devido aos cortes provocados pela batalha orçamentária em Washington, e os danos podem durar por gerações.
Apesar de ter apenas 32 anos, Alicia Tolliver já passou por muita dificuldade na vida: a gravidez na adolescência, o abandono da escola, o desemprego e o fato de se tornar moradora de rua. Mas ela encontrou apoio no Head Start, um programa americano de serviços humanos e saúde para crianças pequenas de baixa renda e suas famílias. Para Tolliver, o Head Start também serviu como programa motivacional. Ela voltou à escola, concluiu um curso de treinamento e encontrou um emprego.
Mas então as coisas foram por água abaixo de novo. Com a crise financeira veio o desemprego e a perda de seu apartamento e de seu carro. De novo, Tolliver encontrou salvação por meio do Head Start, enquanto lutava para manter a si mesma e aos seus três filhos.
Então veio o sequestro.
"É frustrante", diz Tolliver. Ela está prestes a ver tudo se perder novamente.
O sequestro é um corte orçamentário compulsório, o tipo de ideia que apenas políticos poderiam inventar. Com o país profundamente endividado e o presidente Barack Obama e os republicanos incapazes de concordarem em cortes orçamentários de longo prazo, as duas facções criaram uma bomba-relógio de austeridade que detonará em 2013. A ideia era a de que os cortes seriam tão absurdos que um lado ou outro recuaria e cederia terreno visando impedir que a bomba detonasse.
Foi o que o presidente achou que aconteceria. Foi o que os republicanos acharam que aconteceria. Não aconteceu.
Como os efeitos da primeira onda de cortes mal foram notados inicialmente, muitos americanos já se esqueceram dessa invenção bizarra chamada "sequestro". A emissora de TV "CBS" realizou recentemente uma pesquisa que perguntava aos americanos se tinham sido afetados pelo sequestro. Mais de dois terços responderam que não. Agora, com o início do verão no Hemisfério Norte, o sequestro começará para valer.
O secretário de Defesa, Chuck Hagel, acabou de anunciar 11 dias de licença para cerca de 650 mil funcionários civis de seu departamento. Policiais federais, equipes de resposta a desastres, supervisão financeira, ciência e pesquisa --todos experimentarão cortes. O Head Start, que é financiado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos, também será afetado. Por todo o país, aproximadamente 70 mil dentre aproximadamente 1 milhão de crianças inscritas no programa deixarão de receber o apoio do programa.
Esses cortes afetarão o centro do Head Start na Rua 13 de Washington, para onde Alicia Tolliver leva sua filha mais nova. A partir de 1º de julho, 20 crianças serão deixadas repentinamente "sem refeições nutritivas, sem benefícios de consulta médica, sem tratamento dentário", diz Almeta Keys, a diretora do centro. Keys já foi forçada a considerar quais crianças ela escolherá para serem retiradas do programa. Tolliver e sua filha, ela diz, quase certamente terão que sair.
Keys considera os cortes obrigatórios absurdos --não apenas por afetarem "os mais pobres dentre os pobres", mas também porque cortes de gastos agora significarão mais despesas amanhã. "Para cada dólar que o Congresso investe no Head Start", ela diz, "US$ 7 são economizados em geral em nossas comunidades locais". Por quê? "Porque menos crianças abandonam a escola, porque suas despesas com saúde são menores, porque precisaremos de menos presídios."
Como sangria medieval
O absurdo dos cortes enfurece as pessoas que eles afetam. Os Estados Unidos sem dúvida veem como o Sul da Europa está afundando com suas medidas de aperto de cinto e como o desemprego está indo às alturas. Mas aqui, o país está tirando sua própria tomada. "Austeridade, incluindo o sequestro, é a versão econômica da sangria medieval", escreveu Jared Bernstein, ex-conselheiro econômico chefe do vice-presidente Joe Biden, no "New York Times" no início de maio. As pessoas na Idade Média acreditavam que uma pessoa doente precisava perder o sangue supostamente ruim para recuperar a saúde.
Isso, é claro, era tolice.
Na verdade, não são poucos os economistas americanos que aconselham investir, em vez de promover cortes. Esse investimento poderia vir na forma de grandes projetos de infraestrutura, que eram tradicionalmente usados para criação de empregos em tempos de recessão econômica. E, como pôde ser visto na quinta-feira, com a queda de uma ponte em uma estrada interestadual de tráfego intenso no Estado de Washington, há evidência abundante de que os Estados Unidos precisam melhorar sua infraestrutura. Olhando apenas para as pontes, em seu Relatório de Infraestrutura da América de 2013, a Sociedade Americana dos Engenheiros Civis classificou uma entre nove das 600 mil pontes do país como "estruturalmente deficiente".
Além disso, o déficit federal já está decrescendo mais rápido do que o esperado. Os estatísticos independentes do Escritório de Orçamento do Congresso esperam uma nova dívida de US$ 642 bilhões em 2013, aproximadamente US$ 200 bilhões a menos do que o previsto no início do ano. E o Fundo Monetário Internacional alerta que os Estados Unidos não devem exagerar nos cortes orçamentários, já que a taxa de desemprego no país ainda está alta, em 7,5%.
Alicia Tolliver organizou recentemente uma marcha de pais com carrinhos de bebê, que seguiu até o Congresso em apoio ao Head Start. Lá, Breeany, de apenas cinco anos, leu para os membros do Congresso um trecho de um livro infantil como exemplo das realizações do Head Start. Não foi de ajuda. Alguns dos centros do programa já foram fechados.
Outros programas do governo, entretanto, se saíram melhor. Por exemplo, doadores privados cuidaram para que os parques nacionais de Yellowstone e Grand Teton pudessem permanecer abertos ao longo de todo o verão. E em outros lugares, o método cortador de grama foi revogado totalmente. Por exemplo, democratas e republicanos repentinamente se mostraram de acordo em relação à decisão de cancelar as licenças dos controladores de tráfego aéreo. Os legisladores deram à Administração Federal de Aviação mais flexibilidade nos cortes de seu orçamento, impedindo filas longas nos aeroportos.
"Se fôssemos os pilotos que levam os membros do Congresso para casa, talvez também não teríamos nossa verba cortada", diz Keys, a diretora do centro do Head Start.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, durante anúncio dos cortes automáticos de US$ 85 bilhões nos gastos públicos, no início de março
A dor do sequestro tem sido suportável até agora, mas isso mudará em breve. Nos próximos meses, milhares de americanos sofrerão devido aos cortes provocados pela batalha orçamentária em Washington, e os danos podem durar por gerações.
Apesar de ter apenas 32 anos, Alicia Tolliver já passou por muita dificuldade na vida: a gravidez na adolescência, o abandono da escola, o desemprego e o fato de se tornar moradora de rua. Mas ela encontrou apoio no Head Start, um programa americano de serviços humanos e saúde para crianças pequenas de baixa renda e suas famílias. Para Tolliver, o Head Start também serviu como programa motivacional. Ela voltou à escola, concluiu um curso de treinamento e encontrou um emprego.
Mas então as coisas foram por água abaixo de novo. Com a crise financeira veio o desemprego e a perda de seu apartamento e de seu carro. De novo, Tolliver encontrou salvação por meio do Head Start, enquanto lutava para manter a si mesma e aos seus três filhos.
Então veio o sequestro.
"É frustrante", diz Tolliver. Ela está prestes a ver tudo se perder novamente.
O sequestro é um corte orçamentário compulsório, o tipo de ideia que apenas políticos poderiam inventar. Com o país profundamente endividado e o presidente Barack Obama e os republicanos incapazes de concordarem em cortes orçamentários de longo prazo, as duas facções criaram uma bomba-relógio de austeridade que detonará em 2013. A ideia era a de que os cortes seriam tão absurdos que um lado ou outro recuaria e cederia terreno visando impedir que a bomba detonasse.
Foi o que o presidente achou que aconteceria. Foi o que os republicanos acharam que aconteceria. Não aconteceu.
Cortando com descaso
O período de carência expirou em 1º de março sem que chegassem a um acordo. Desde então, o governo está cortando programas aleatoriamente, ao estilo cortador de grama --US$ 85 bilhões em cortes de gastos precisam ser feitos até o fim de setembro, uma quantia aproximadamente igual a todo o orçamento federal da Áustria. Em outras palavras, no espaço de um ano e meio, os Estados Unidos precisam cortar o equivalente à Áustria de seu orçamento. Centenas de milhares de empregos estão em risco. E se os políticos em Washington ainda não tiverem chegado a um acordo até aquela altura, os cortes prosseguirão. O país corre o risco de viver sob um sequestro permanente, com outro US$ 1,2 trilhão necessário em reduções do orçamento até 2021.Como os efeitos da primeira onda de cortes mal foram notados inicialmente, muitos americanos já se esqueceram dessa invenção bizarra chamada "sequestro". A emissora de TV "CBS" realizou recentemente uma pesquisa que perguntava aos americanos se tinham sido afetados pelo sequestro. Mais de dois terços responderam que não. Agora, com o início do verão no Hemisfério Norte, o sequestro começará para valer.
O secretário de Defesa, Chuck Hagel, acabou de anunciar 11 dias de licença para cerca de 650 mil funcionários civis de seu departamento. Policiais federais, equipes de resposta a desastres, supervisão financeira, ciência e pesquisa --todos experimentarão cortes. O Head Start, que é financiado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos, também será afetado. Por todo o país, aproximadamente 70 mil dentre aproximadamente 1 milhão de crianças inscritas no programa deixarão de receber o apoio do programa.
Esses cortes afetarão o centro do Head Start na Rua 13 de Washington, para onde Alicia Tolliver leva sua filha mais nova. A partir de 1º de julho, 20 crianças serão deixadas repentinamente "sem refeições nutritivas, sem benefícios de consulta médica, sem tratamento dentário", diz Almeta Keys, a diretora do centro. Keys já foi forçada a considerar quais crianças ela escolherá para serem retiradas do programa. Tolliver e sua filha, ela diz, quase certamente terão que sair.
Keys considera os cortes obrigatórios absurdos --não apenas por afetarem "os mais pobres dentre os pobres", mas também porque cortes de gastos agora significarão mais despesas amanhã. "Para cada dólar que o Congresso investe no Head Start", ela diz, "US$ 7 são economizados em geral em nossas comunidades locais". Por quê? "Porque menos crianças abandonam a escola, porque suas despesas com saúde são menores, porque precisaremos de menos presídios."
Como sangria medieval
O absurdo dos cortes enfurece as pessoas que eles afetam. Os Estados Unidos sem dúvida veem como o Sul da Europa está afundando com suas medidas de aperto de cinto e como o desemprego está indo às alturas. Mas aqui, o país está tirando sua própria tomada. "Austeridade, incluindo o sequestro, é a versão econômica da sangria medieval", escreveu Jared Bernstein, ex-conselheiro econômico chefe do vice-presidente Joe Biden, no "New York Times" no início de maio. As pessoas na Idade Média acreditavam que uma pessoa doente precisava perder o sangue supostamente ruim para recuperar a saúde.
Isso, é claro, era tolice.
Na verdade, não são poucos os economistas americanos que aconselham investir, em vez de promover cortes. Esse investimento poderia vir na forma de grandes projetos de infraestrutura, que eram tradicionalmente usados para criação de empregos em tempos de recessão econômica. E, como pôde ser visto na quinta-feira, com a queda de uma ponte em uma estrada interestadual de tráfego intenso no Estado de Washington, há evidência abundante de que os Estados Unidos precisam melhorar sua infraestrutura. Olhando apenas para as pontes, em seu Relatório de Infraestrutura da América de 2013, a Sociedade Americana dos Engenheiros Civis classificou uma entre nove das 600 mil pontes do país como "estruturalmente deficiente".
Além disso, o déficit federal já está decrescendo mais rápido do que o esperado. Os estatísticos independentes do Escritório de Orçamento do Congresso esperam uma nova dívida de US$ 642 bilhões em 2013, aproximadamente US$ 200 bilhões a menos do que o previsto no início do ano. E o Fundo Monetário Internacional alerta que os Estados Unidos não devem exagerar nos cortes orçamentários, já que a taxa de desemprego no país ainda está alta, em 7,5%.
Alicia Tolliver organizou recentemente uma marcha de pais com carrinhos de bebê, que seguiu até o Congresso em apoio ao Head Start. Lá, Breeany, de apenas cinco anos, leu para os membros do Congresso um trecho de um livro infantil como exemplo das realizações do Head Start. Não foi de ajuda. Alguns dos centros do programa já foram fechados.
Outros programas do governo, entretanto, se saíram melhor. Por exemplo, doadores privados cuidaram para que os parques nacionais de Yellowstone e Grand Teton pudessem permanecer abertos ao longo de todo o verão. E em outros lugares, o método cortador de grama foi revogado totalmente. Por exemplo, democratas e republicanos repentinamente se mostraram de acordo em relação à decisão de cancelar as licenças dos controladores de tráfego aéreo. Os legisladores deram à Administração Federal de Aviação mais flexibilidade nos cortes de seu orçamento, impedindo filas longas nos aeroportos.
"Se fôssemos os pilotos que levam os membros do Congresso para casa, talvez também não teríamos nossa verba cortada", diz Keys, a diretora do centro do Head Start.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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