segunda-feira, 27 de maio de 2013

Em Portugal, cortes criam fenômeno da pobreza instantânea
Antonio Jiménez Barca - El Pais
Em uma sala vaga nas garagens da empresa de ônibus de Lisboa, a comissão de trabalhadores arranjou aleatoriamente o básico: litros de leite, latas de sardinhas, pacotes de salsichas, potes de feijão-branco, macarrão e várias dezenas de pacotes cilíndricos de biscoitos, empilhados como troncos em uma serraria.
Há meses, os condutores de ônibus e de bondes de Lisboa doam e armazenam alimentos, não para associações de pobres ou campanhas beneficentes de bairros da periferia. Isto é mais simples e mais brutal: são para eles mesmos, para companheiros que, apesar de terem trabalho e um salário mensal, passam fome no fim do mês.
Os constantes cortes salariais que afetam sobretudo funcionários públicos em Portugal, os aumentos de impostos decretados a toda a população assalariada e a política de ajustes permanentes do governo do conservador Pedro Passos Coelho (pressionado pela troica), que corrói continuamente o país, faz que a imensa maioria desses trabalhadores - funcionários públicos, afinal - vão ao limite em seus gastos, alcançando o dia 31 do mês quase por milagre.

Em um flash

Assim, basta um revés qualquer, há alguns anos contornável (um divórcio, o desemprego do cônjuge, uma série de gastos imprevistos...), para se transformarem diretamente em pobres. Um exemplo de como a tateante classe média portuguesa se torna classe miserável de um dia para o outro, sem escalas intermediárias. Como no caso de Evaristo.

Cortes históricos

30 de novembro de 2011O Parlamento aprova um ajuste orçamentário de mais de 1,3 bilhão de euros, o mais duro da democracia portuguesa
3 de outubro de 2012O governo anuncia um aumento do imposto de renda para arrecadar 4 bilhões de euros
5 de abril de 2013O Tribunal Constitucional declara ilegal a retirada do pagamento extra de verão a funcionários públicos e aposentados decidida pelo governo
4 de maio de 2013Lisboa anuncia cortes no valor de 4,8 bilhões de euros até o final de 2015. As medidas afetam sobretudo funcionários públicos e aposentados
Evaristo Paulo é magro, alto, amável. Tem 38 anos, veste uma jaqueta preta de couro e trabalha como motorista de ônibus em Lisboa, oito horas por dia, cinco dias por semana. Usa o cabelo curto e um brinco na orelha. Tem uma filha de 6 anos. Um homem normal.
Há algumas semanas, sua chefe alertou a comissão de trabalhadores para lhes informar simplesmente que Evaristo passava fome e que deviam ajudá-lo, que talvez por desconhecimento ou por vergonha não havia procurado a sala dos pacotes de espaguete.
Há dois anos, Evaristo, que desde 2007 está na folha de pagamentos da companhia de ônibus de Lisboa, dependente diretamente do Estado, ganhava 1.100 euros por mês. Agora, devido às reduções salariais, não chega a 800. Divorciado, paga uma pensão e a cada 15 dias visita sua filha, que vive com a mãe em uma cidade situada a 150 km de Lisboa.
"Prefiro ficar sem comer do que sem gasolina para fazer essa viagem", explica. Um dos membros dessa comissão, Paulo Gonçalves, entrou em contato com ele. Desde então, quando Evaristo precisa, vai à sala da comida. Como muitos outros.
Gonçalves explica que implementaram o banco de alimentos no Natal, porque começaram a perceber que muitos companheiros estavam passando mal. "Há quem tenha mulher desempregada, sem receber auxílio-desemprego porque não tinha contrato, muitas trabalhavam em restaurantes que fecharam ou em lojas que não dão mais benefícios. Sei de cônjuges de companheiros que foram demitidos por uma mensagem de celular. As coisas estão assim", explica.
Desde o Natal já atenderam mais de 80 companheiros, em uma turma de cerca de 2 mil trabalhadores. Com uma caminhonete, cada semana um par de membros da comissão percorre diversas estações e garagens onde outros companheiros deixaram os alimentos, a fim de reuni-los todos nesta sala situada no bairro de Santo Amaro, perto do início da ponte 25 de Abril.

De 1.200 a zero

Os condutores, como todos os funcionários públicos portugueses, viram se volatilizar por decreto um de seus dois pagamentos extras anuais, e outro diluir-se em pagamentos mensais que por sua vez desapareceram devido aos impostos. Também foram eliminadas gratificações e complementos. O resultado é uma perda média de 300 a 400 euros por mês em salários mensais de 1 mil a 1.200 euros.
Há dois meses o Tribunal Constitucional português ditou que os pagamentos extras não podiam ser retirados e agora o governo estuda como aplicar a sentença enquanto se arbitram novas medidas alternativas para que a mudança não represente um empecilho no caminho draconiano para a meta de déficit definido pela Europa.
Nem Evaristo nem Gonçalves confiam muito em que lhes devolverão seu pagamento extra. Têm certeza de que o ministro das Finanças, Vítor Gaspar, encontrará outra fórmula jurídica para que esse dinheiro jamais chegue a seus bolsos. Passos Coelho também anunciou uma nova onda de cortes, que durarão três anos e afetarão, sobretudo, funcionários públicos e aposentados.
De modo que esses condutores, que sentem saudade de um passado remoto de condições trabalhistas toleráveis, abominam um presente de pesadelo e temem cada dia mais um futuro imprevisível.
Enquanto isso, acumulam latas e víveres não perecíveis na sala desocupada das garagens, sabendo que a loteria da má sorte e a desgraça que coube agora a Evaristo pode tocar amanhã qualquer outro.
"Às vezes levamos comida para a casa de alguém porque tem vergonha de que os outros companheiros os vejam pedir. Outros vêm aqui com suas mulheres e seus filhos, e isso nos parte o coração", conta Gonçalves.
Depois acrescenta, ao lado de uma pilha de latas de atum:
"Se trabalhando normalmente não dá para viver com um pouco de dignidade, então diga-me: o que estamos fazendo aqui?"
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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