quarta-feira, 22 de maio de 2013

Imigrantes desaparecem em rotas mais arriscadas no deserto do Arizona
Fernanda Santos e Rebekah Zemansky - NYT
David McNew/Getty Images/AFP


No Instituto Médico Legal (IML) do Condado de Pima – localizado em Tucson e repositório do maior conjunto de registros de imigrantes que desapareceram durante a travessia da fronteira entre Estados Unidos e México –, 774 pacotes de restos mortais aguardavam identificação em meados deste mês de maio, armazenados em sacos mortuários mofados cobertos de pó.
Para a família de Andrés Valenzuela Cota, esses restos mortais representam a chance de virar a página de um capítulo triste da história da família. Cota tinha 45 anos quando desapareceu, em 15 de julho de 2011, depois de ligar para uma sobrinha em Los Angeles e pedir para que ela lhe enviasse US$ 100 por meio de uma filial da Western Union localizada em Cananea, no México, cidade que é ponto de paragem para os contrabandistas que transportam os imigrantes ilegais através do Estado do Arizona.
Num momento em que o Congresso dos Estados Unidos discute a implantação das mais radicais alterações para o sistema de imigração do país das últimas décadas, os restos mortais armazenados no IML de Tucson também são um lembrete incômodo das complexas variáveis que fazem parte da equação da segurança nas fronteiras norte-americanas. O número de apreensões de imigrantes ilegais que tentam entrar nos EUA caiu vertiginosamente nos últimos anos – um dos indicadores mais fortes de que menos pessoas tentaram atravessar a fronteira ilegalmente. Mas o número de mortes entre esses imigrantes tem se mantido alto.
"Menos pessoas estão tentando atravessar a fronteira", disse Bruce Anderson, antropólogo forense-chefe do Instituto Médico Legal local. "Mas uma parcela maior dessas pessoas está morrendo atualmente".
Foram registradas 463 mortes de imigrantes no ano fiscal passado, que se encerrou em 30 de setembro de 2012 – o que equivale a aproximadamente cinco pessoas mortas a cada quatro dias, de acordo com uma análise realizada pelo Escritório para a América Latina de Washington (Office on Latin America), grupo de defesa dos direitos humanos. Desde que as estatísticas federais começaram a ser compiladas, apenas o anos de 2005 registrou mais mortes e, nesse ano, o número de apreensões de imigrantes presos tentando cruzar a fronteira foi três vezes superior ao do último ano fiscal.
Como a segurança nas fronteiras foi reforçada, obrigando os imigrantes a buscar rotas mais remotas e perigosas, o aumento do número de mortes no ano passado ocorreu no duro trecho de deserto que se estende do extremo sul do setor de Tucson – como a região é chamada pela Patrulha de Fronteira –, o mais movimentado ao longo da fronteira.
O único trecho mais arriscado do que esse é o setor do Vale do Rio Grande, no Texas, onde, entre 1º de outubro do ano passado e 30 abril deste ano, policiais e fazendeiros encontraram os corpos de 77 imigrantes – mais de metade do número de corpos encontrados nesse local durante todo o passado ano fiscal passado: 150.
Nesse setor, a maioria das mortes ocorreu no Condado de Brooks, que é pequeno e pobre. Nesse condado, que tem cerca de 2,4 mil km quadrados, a renda familiar média é de US$ 25 mil. Seguindo o ritmo atual, este ano o número de restos mortais de imigrantes recuperados na região deve ser o dobro do total do ano passado, que ficou em 129 e representou um recorde para o condado, disse Raul Ramirez, juiz de Brooks. Acredita-se que maioria dos mortos é proveniente da América Central, afirmou o juiz Ramirez.
O IML de Tucson, que lida com as autópsias dos municípios fronteiriços do setor de Tucson – ou seja, três dos quatro condados do Arizona que fazem fronteira com o México –, recebeu 49 conjuntos de restos mortais de 1º de janeiro até 9 maio deste ano, disse o Dr. Anderson. Cada um recebeu um número e, em seguida, foi fotografado, catalogado, pesado e medido. As roupas dos mortos, esfarrapadas devido à exposição às condições climáticas e a animais selvagens, foram colocadas em sacos plásticos.
Durante anos, a identificação dos restos mortais dos imigrantes era uma tarefa quase impossível, pois havia muito poucas pistas. Um número reduzido de imigrantes provenientes de comunidades rurais pobres podiam ser rastreados por meio de seus registros dentários. Cartões de identificação, encontrados em seus bolsos e mochilas, não eram confiáveis, pois muitos eram falsos, comprados por cidadãos provenientes da América Central para enganar as autoridades do México, país que os imigrantes tinham que atravessar ilegalmente antes de chegar aos Estados Unidos.
Montar os restos mortais armazenados, como conectar uma mandíbula que chegou ao IML no início da primavera deste ano a um conjunto de fragmentos sem essa parte, é como resolver um quebra-cabeça terrível. A tarefa exige que se realize uma pesquisa manual nos arquivos de papel dos casos, que receberam códigos por cor e revestem as paredes do escritório do Dr. Anderson: uma prateleira para os casos da década de 1990, quando havia poucas ocorrências, e o restante para as mais de 2.100 mortes registradas desde 2001.
"A causa e a forma da morte é fácil de definir: ou elas estão claras nos restos mortais ou são indeterminadas", disse o Dr. Gregory L. Hess, legista-chefe do Condado de Pima. "Mas tentar identificar uma pessoa pode demorar muito tempo".
No início deste mês, o IML de Tucson divulgou a criação de um banco de dados de mapeamento computadorizado, que contém os registros de 1.826 migrantes que morreram no deserto. Esse banco lista as coordenadas de GPS onde os corpos dos imigrantes foram encontrados e, caso tenha sido possível determinar, seu sexo, idade e causa da morte. Os dados dão ao público a primeira visão abrangente sobre a complexidade do problema. Combinadas, as centenas de pontos vermelhos que representam as pessoas que morreram devido à exposição ao intenso calor e frio do deserto compõem, de longe, a causa de morte mais comum desses imigrantes, e se parecem com um ferimento disforme.
O projeto dessa base de dados começou há cinco anos, por meio de uma parceria com a Humane Borders, grupo sem fins lucrativos que já estava mapeando as mortes de imigrantes. Um doador anônimo concedeu US$ 175 mil para o desenvolvimento do banco de dados.
A mandíbula solitária havia sido encontrada em um ponto distante do deserto, próximo a Three Points, localidade a oeste de Tucson. Angela Soler, antropóloga forense do IML, buscou no banco de dados corpos encontrados na mesma região. Havia 52 em um raio de seis quilômetros.
A Dra. Soler começou seu trabalho focando naqueles corpos que se encontravam mais próximos do local onde a mandíbula foi descoberta. Um deles era o corpo completo de um homem encontrado e identificado em 2008. Outro foi encontrado em 2012 – um homem latino-americano não identificado, com idade entre 20 e 35 anos, grupo demográfico mais comum entre os imigrantes mortos. Ela pegou o arquivo correspondente e constatou que o corpo estava sem a mandíbula (testes de DNA estão sendo realizados para determinar se a mandíbula pertence a esse corpo).
"Demorou apenas algumas horas para eu fazer o que poderia ter levado meses", disse ela.
Em março, o IML do Condado de Pima pediu à família de Cota, o imigrante que desapareceu em 2011, seus registros dentários para verificar se ele estava entre os mortos não identificados armazenados lá. Havia sete combinações possíveis entre os corpos encontrados no Condado de Cochise, para o qual esse IML realiza as autópsias e por onde se acredita que Cota tenha entrado nos EUA, com base no que ele disse a seus parentes em seu último telefonema.
Um cunhado de Cota, que pediu para não ser identificado por temer os cartéis de drogas que controlam o negócio do contrabando humano, disse que a família o registrou como desaparecido em ambos os lados da fronteira, além de ter visitado hospitais, delegacias e prisões do Arizona, percorrido a mesma rota que ele fez e distribuído folhetos com o nome e a fotografia de Cota em comunidades ao longo do caminho.
"Todas as portas em que estamos batendo estão fechadas", disse o cunhado. "Nenhuma delas se abre".
Cota viveu durante 20 anos na Califórnia: a maior parte desse período de forma ilegal, permanecendo no país depois que seu visto expirava. Quando a mãe dele ficou gravemente doente, ele partiu para Los Mochis, no estado mexicano de Sinaloa, para dizer adeus a ela.
Em setembro de 2010, ele tentou cruzar a fronteira para retornar aos EUA através de San Diego, usando um passaporte falso. Mas ele foi pego e preso por 45 dias. Após ser libertado, ele tentou duas vezes se esgueirar novamente pela fronteira, mas sem sucesso. Por fim, um parente lhe disse para ir até Nogales, cidade fronteiriça do México, onde um traficante poderia transportá-lo até o estado do Arizona "por uma tarifa com desconto", disse seu cunhado.
Em sua última ligação, Cota disse que estava prestes a começar sua jornada, mas que teve que deixar seu celular para trás. Ele prometeu ligar de novo dentro de seis dias.
Em 9 de maio, Robin C. Reineke, antropólogo cultural do escritório do IML, vasculhou o banco de dados para ver se encontrava um resultado coincidente, e verificou todos os casos do Condado de Cochise, um por um.
Cota não estava entre eles. A busca continua.
Tradutor: Cláudia Gonçalves

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