Crônica do deserto
GAUDÊNCIO TORQUATO - OESP
Há duas semanas, cerca de 40 empresários brasileiros,
devidamente paramentados com paletó escuro e gravata, misturavam-se a
homens de túnica branca e chinelos de couro, imprimindo um toque exótico
à paisagem abrasadora do Deserto de Rub al-Khali, na fronteira entre
Abu Dabi e Dubai, que formam, com cinco outros, os sete Estados dos
Emirados Árabes Unidos. Participavam de evento promovido por uma empresa
brasileira que inaugurará daqui a seis meses a sua maior fábrica de
alimentos no exterior. O tom das conversas girava em torno do custo
Brasil, podendo-se ouvir, de um lado, peroração lamurienta sobre a perda
de competitividade da nossa indústria e, de outro, exclamações de
admiração pela capacidade de uma jovem nação, de apenas 42 anos (a se
completarem em 2 de dezembro), vir a se transformar num dos mais
celebrados ícones da modernização, da gestão e do empreendedorismo
mundial neste segundo decênio do século 21.
Alguns usarão o argumento de que daquele tórrido deserto se extraem
diariamente 3 milhões de barris de petróleo e, com essa riqueza (a sexta
maior reserva do mundo), qualquer país seria capaz de transformar o
inferno em céu. Em termos.
O Emirado de Dubai quase não tem petróleo. É um efervescente centro
de serviços, a exibir uma arquitetura futurista, cujos traços indicam a
opulência em encontro com o arrojo e a beleza. O resultado é uma
apreciada coleção de monumentos e projetos qualificados por
superlativos: o mais alto, o mais extenso, o mais exótico, a arquitetura
mais criativa, e assim por diante.
Tanto em Dubai, a primeira cidade, quanto na capital dos Emirados,
Abu Dabi, que é o maior Estado (86,7% da área), transparecem sinais de
um progresso que se instala, a passos avançados, não apenas pela pujança
financeira decorrente de recursos do petróleo, mas pela visão apurada e
competente de seus líderes, como o principal arquiteto da nação, o
xeque Zayed Al Nahayan, que a presidiu de 1971 a 2004; o seu filho
Khalifa bin Zayed, emir de Abu Dabi e seu atual presidente; e o vice, o
emir de Dubai, Mohammed bin Rashid Al Maktoum, que é também
primeiro-ministro.
Quem pensa encontrar xeques incultos, rudes, se surpreenderá ao ver
líderes preparados, de alta formação, conhecedores da realidade mundial
e, sobretudo, pragmáticos. Bela e grata surpresa.
Que princípios orientam os governantes desse país do Golfo Pérsico a
transformá-lo numa das mais desenvolvidas economias do Oriente Médio, um
dos mais ricos do mundo, com PIB nominal per capita de US$ 54.607?
Fatores se destacam, a começar pelo esforço de integrar os povos
(tribos) da região. Com a descoberta das jazidas de petróleo, em 1958,
os xeques buscaram a união e a Grã-Bretanha, que controlava a região,
foi obrigada a retirar suas tropas, tornando possível a criação de um
Estado independente. Depois, a compreensão de que o regime - monarquia
constitucional - deveria conformar-se aos desafios da globalização, sob
pena de continuar a ser uma comunidade isolada no deserto, como o foi há
décadas. Para tanto se aplica a estratégia de maximizar os pontos
fortes e eliminar os fracos e, a partir daí, nas palavras do emir de
Dubai, "alcançar um estágio de desenvolvimento equilibrado". É visível o
esforço que se faz para buscar o conceito de excelência, tarefa
complexa na sociedade árabe por causa da herança cultural, conservadora,
que impõe cuidados na implantação de processos modernizantes.
Os governantes dos Emirados ajustam o foco no planejamento de
funções, no sentido de integrar os setores público e privado, escolas
públicas e particulares, os institutos e as universidades. A imagem é de
um laboratório de gestão. Em cada empreendimento se vê a preocupação
com a qualidade, o detalhe, a lógica, a funcionalidade.
Investiu-se pesadamente em infraestrutura. Os mais de 4 mil km de
estradas são totalmente pavimentados. O turismo é uma das alavancas,
apoiada na excelência da rede hoteleira, a mostrar como o Brasil, com
seus 8 mil km de costa e belezas naturais incomparáveis, vive nesse
setor a idade da pedra lascada. Ali, o futuro parece ter chegado com
pressa. As planilhas de incentivo aos investimentos forçam a comparação
com governos de países que avançam sobre o bolso dos contribuintes: não
há imposto de renda de pessoa jurídica ou de pessoa física, nem retenção
de imposto; tampouco há imposto sobre os lucros de capital ou
restrições de moeda; não existem barreiras comerciais e o imposto de
importação é de apenas 5%, com muitas isenções alfandegárias. Só bancos e
companhias de energia pagam impostos. O capital não é um bicho-papão,
como se dá a entender em nossos trópicos. O Estado, mesmo sob regime
monárquico, não tem a bocarra pantagruélica que avança sobre o bolso do
contribuinte.
As culturas convergem e se misturam na estética das vestimentas e na
polifonia dos idiomas. Num território regido pela sharia (lei islâmica),
é notável a pequena quantidade de mulheres que usam a abaya (túnica
preta), em contraste com as roupas ocidentais. A pluralidade
manifesta-se em mais de 200 nacionalidades que oxigenam a vida cultural e
artística.
Samuel P. Huntington, em O Choque de Civilizações, lembrava que nos
anos 1980 e 1990 a tendência generalizada no Islã seguia uma direção
antiocidental: "Os muçulmanos receiam e detestam o poderio ocidental e a
ameaça que ele representa para sua sociedade e suas crenças". A
realidade dos Emirados Árabes Unidos mostra que essa visão ou está
superada ou ganha novos contornos.
O vice-presidente Michel Temer, que por lá passou, e o grupo de
líderes empresariais que foi prospectar negócios na região viram como
uma nação de pouco mais de 8 milhões de pessoas pode dar lições a um
país de dimensão continental e 200 milhões de habitantes.
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