Claudi Pérez - El Pais
Tudo começou como uma espécie de exorcismo: jamais uma guerra como aquela. Sessenta anos depois, a UE começa sua segunda refundação com outro sortilégio: nunca mais outra crise como esta.
O furacão financeiro deixou marca na alma europeia. Uma feia cicatriz
percorre o continente de norte a sul. Não faltam estereótipos, velhos e
novos: as mentiras gregas, a delirante exuberância espanhola, a
temeridade irlandesa, a liderança egoísta da Alemanha.
Diante desse diálogo de surdos entre credores e devedores, a descoberta é que todos os países do euro compartilham um destino: o que acontecer em Chipre será contagiado aos demais. Pelo caminho se esfumaram certezas e violaram tabus, cruzaram-se linhas vermelhas e reescreveram-se regras de ouro em uma série de decisões atropeladas. Essa enxurrada de medidas, tomadas com a arritmia própria do desespero, permitiu evitar o pior, embora deixe pela frente uma longa estagnação de consequências imprevisíveis.
Já são cinco anos de crise. Com a suspeita de que nunca houve um plano mestre para combatê-la, a próxima etapa é essa segunda refundação (depois do período constituinte dos anos 1950 e da primeira transição, que começa com a queda do Muro, inclui a criação do euro e culmina com a entrada do bloco do Leste). Uma estação que se adivinha fundamental para o futuro de um projeto que, devido a suas dificuldades, vê despertar velhos demônios.
"Bruxelas não pode atrasar mais o imprescindível impulso político para digerir a enxurrada de novas regras que devem ser incorporadas na medida do possível aos tratados. Isso deve se traduzir em uma melhor governança, porque aí está a falha: não conseguir uma tomada de decisões que combine eficácia e realismo político", prevê uma alta fonte comunitária.
O "cupulismo" dos últimos anos decretou austeridade "urbi et orbi": ninguém discute essa receita, embora se admitam erros de diagnóstico em alguns países e uma reação excessiva geral, atribuível à gravidade da crise de dívida em 2010.
Bruxelas corrigiu o tiro, mas a crua realidade é que só a Alemanha recuperou o nível do PIB anterior à crise. A Europa, por tudo isso, foi perdendo os europeus: Bruxelas está em guarda diante da ascensão da eurodecepção, com as eleições daqui a seis meses.
"Precisamos que volte a política", aponta o ex-primeiro-ministro italiano Mario Monti.
"É urgente que o debate público nas eleições, que curiosamente coincidem com o centenário da Primeira Guerra Mundial - que traça estranhos paralelos com a situação atual: populismos, protecionismos, nacionalismos, embora em outros níveis -, esteja à altura do desafio", acrescenta Javier Solana, uma das figuras do europeísmo.
Diante da eleição, 60% dos europeus desconfiam da UE, segundo dados do último Eurobarômetro, contra 31% antes da crise.
A União era e é uma espécie de expedição ao horizonte: nunca houve mapa para decifrar os labirintos dessa nebulosa chamada Bruxelas. Mas as mais de dez fontes consultadas concordam que este é um momento chave; a antessala ou a primeira etapa de uma espécie de transição ou refundação.
Nessa disputa eterna entre o possível e o desejável, a UE precisa encontrar uma via intermediária entre os que acreditam que as turbulências obrigam a dar um salto federal (os improváveis Estados Unidos da Europa) e os que apostam na versão euro do "Apocalypse Now" de Coppola com música de Wagner.
A Europa demonstrou sua tenacidade diante dos que sentem cada vez forte a tentação de desmontar. "O provável é que não haja nem salto federal nem desmembramento. E que se ative essa segunda transição, com as inevitáveis decepções, como a eterna promessa desse hipotético retorno da grande política", diz Luuk Van Middelaar, uma das vozes mais interessantes, mais originais e talvez por isso menos conhecidas de Bruxelas.
Van Middelaar - autor do impagável "El paso hacia Europa" [A passagem para a Europa] e dos discursos de Herman Van Rompuy - define a união como "um estado de transição permanente" e a política como "a forma como uma sociedade se ocupa da incerteza". Por tudo isso, "o projeto europeu está destinado a ter regras cambiantes, porque não se pode antecipar a criatividade da história, nem as mil faces da crise". "O urgente", dispara, "é voltar a conquistar as pessoas: isso não pode ser feito sem um plano geral e sem liderança."
O analista Moisés Naím reforça essa perspectiva. "Nem as instituições europeias nem os líderes políticos nacionais têm hoje poder suficiente. Nem sequer Merkel pode governar sem coalizão. Daí essas decisões tardias e ineficazes, daí a enfermidade da vetocracia, da qual a UE não consegue se livrar. A Europa foi forte quando teve lideranças fortes. A chapa atual em Bruxelas - Barroso, Ashton, Van Rompuy - não dá mais."
"Sem líderes é impossível acometer o maior desafio que a UE tem pela frente: reconquistar os europeus", acrescenta Eneko Landáburu, ex-alto funcionário da Comissão.
Esse é, em grandes traços, o desafio. "Toda essa nova linguagem, esse conjunto de siglas que ninguém é capaz de explicar, é na realidade alta política disfarçada de tecnicismo. Os mecanismos de resgate (EFSF e MEDE), o Semestre Europeu, o Six Pack, o Two Pack, o Fiscal Compact, os resgates e a troica, o OMT que permite ao banco central comprar títulos: ninguém pode contar uma história com esse vozerio; mesmo assim, entretanto, esse monte de siglas pode funcionar. Onde estão os líderes capazes de armar com isso um discurso que acenda os europeus?", pergunta-se Joachim Bitterlich, ex-assessor de um dos grandes: Helmut Kohl.
O mundo não está em crise, mas a Europa sim, está. Não é econômica, ou não é só econômica: é uma crise política, institucional e sobretudo de governança. E de passagem é uma espécie de vingança da história, da democracia e da geografia: inscreve-se em um movimento telúrico que está levando o centro do mundo para o Pacífico.
"A aceleração das mudanças no mundo pega a Europa com o pé errado, com um líder - a Alemanha - que só está no curto prazo: em seu curto prazo. E em meio à destruição desse precário equilíbrio europeu que sempre havia existido entre responsabilidade e solidariedade. Hoje ninguém confia em ninguém: assim não pode haver solidariedade nem responsabilidade", afirma o sociólogo José María Maravall.
Além da política, ou exatamente porque brilha por sua ausência, o futuro é difuso. André Sapir, do grupo de pensadores Bruegel, aponta que o cenário central para a zona do euro continuará consistindo em sair do ritmo durante cinco anos: "O preocupante é que continua sem haver consenso sobre a natureza e as causas da crise: isso explica por que só podemos aspirar a sair do ritmo". É verdade que a UE escorou o edifício, mas continua havendo defeitos de estrutura e existe o risco de que as melhoras "descarrilem por causa de acidentes econômicos ou políticos", avisa.
Daren Acemoglu, autor de um dos livros fundamentais dos últimos tempos - "Por qué fracasan los países" - é dos que afirmam que a segunda refundação da UE "está aí". Em uma conversa com este jornal, Acemoglu via duas revoluções entre as últimas novidades europeias: a união bancária e os exames prévios dos orçamentos nacionais. A união bancária, em especial, pode ser uma troca de pele, uma mudança na natureza da Europa. O clube do euro sempre foi obcecado pelos vícios públicos e a inflação, uma espécie de herança da história alemã.
O euro se dotou de mecanismos de controle do setor público (de credibilidade duvidosa, como já se viu em Maastricht); supunha-se que os mercados se autorregulassem e que os vícios privados se corrigissem sozinhos: não era preciso prestar atenção nisso. Mas a crise está mudando essa abordagem.
"Se afinal a união bancária não reduzir sua ambição, a Europa experimentará uma mudança substancial que pode ajudá-la a corrigir seus desequilíbrios", prevê Acemoglu. "Uma certa quantidade de transferências é inevitável, mas creio que isso pode ser mantido em um nível tolerável para os credores, desde que se façam as mudanças institucionais adequadas - em especial a união bancária, e que as políticas dos países periféricos voltem a estar sob controle", acrescenta. "Não creio no colapso do euro; entretanto, é preciso reduzir a fonte inesgotável de instabilidade que é o projeto europeu atual, e para isso a chave é a união bancária."
A Europa, enfim, está a caminho de despertar se nada for distorcido. Para isso, o papel do BCE é essencial como supervisor bancário.
"É preciso continuar abordando as finanças públicas e fazer reformas, mas com a união bancária a Europa também põe um olho em outras fontes de vulnerabilidade. Para o BCE, isso será uma imersão na realidade, a queda do Olimpo. O futuro depende de como Draghi administrará isso no outono", concluiu uma fonte comunitária.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Diante desse diálogo de surdos entre credores e devedores, a descoberta é que todos os países do euro compartilham um destino: o que acontecer em Chipre será contagiado aos demais. Pelo caminho se esfumaram certezas e violaram tabus, cruzaram-se linhas vermelhas e reescreveram-se regras de ouro em uma série de decisões atropeladas. Essa enxurrada de medidas, tomadas com a arritmia própria do desespero, permitiu evitar o pior, embora deixe pela frente uma longa estagnação de consequências imprevisíveis.
Já são cinco anos de crise. Com a suspeita de que nunca houve um plano mestre para combatê-la, a próxima etapa é essa segunda refundação (depois do período constituinte dos anos 1950 e da primeira transição, que começa com a queda do Muro, inclui a criação do euro e culmina com a entrada do bloco do Leste). Uma estação que se adivinha fundamental para o futuro de um projeto que, devido a suas dificuldades, vê despertar velhos demônios.
"Bruxelas não pode atrasar mais o imprescindível impulso político para digerir a enxurrada de novas regras que devem ser incorporadas na medida do possível aos tratados. Isso deve se traduzir em uma melhor governança, porque aí está a falha: não conseguir uma tomada de decisões que combine eficácia e realismo político", prevê uma alta fonte comunitária.
O "cupulismo" dos últimos anos decretou austeridade "urbi et orbi": ninguém discute essa receita, embora se admitam erros de diagnóstico em alguns países e uma reação excessiva geral, atribuível à gravidade da crise de dívida em 2010.
Bruxelas corrigiu o tiro, mas a crua realidade é que só a Alemanha recuperou o nível do PIB anterior à crise. A Europa, por tudo isso, foi perdendo os europeus: Bruxelas está em guarda diante da ascensão da eurodecepção, com as eleições daqui a seis meses.
"Precisamos que volte a política", aponta o ex-primeiro-ministro italiano Mario Monti.
"É urgente que o debate público nas eleições, que curiosamente coincidem com o centenário da Primeira Guerra Mundial - que traça estranhos paralelos com a situação atual: populismos, protecionismos, nacionalismos, embora em outros níveis -, esteja à altura do desafio", acrescenta Javier Solana, uma das figuras do europeísmo.
Diante da eleição, 60% dos europeus desconfiam da UE, segundo dados do último Eurobarômetro, contra 31% antes da crise.
A União era e é uma espécie de expedição ao horizonte: nunca houve mapa para decifrar os labirintos dessa nebulosa chamada Bruxelas. Mas as mais de dez fontes consultadas concordam que este é um momento chave; a antessala ou a primeira etapa de uma espécie de transição ou refundação.
Nessa disputa eterna entre o possível e o desejável, a UE precisa encontrar uma via intermediária entre os que acreditam que as turbulências obrigam a dar um salto federal (os improváveis Estados Unidos da Europa) e os que apostam na versão euro do "Apocalypse Now" de Coppola com música de Wagner.
A Europa demonstrou sua tenacidade diante dos que sentem cada vez forte a tentação de desmontar. "O provável é que não haja nem salto federal nem desmembramento. E que se ative essa segunda transição, com as inevitáveis decepções, como a eterna promessa desse hipotético retorno da grande política", diz Luuk Van Middelaar, uma das vozes mais interessantes, mais originais e talvez por isso menos conhecidas de Bruxelas.
Van Middelaar - autor do impagável "El paso hacia Europa" [A passagem para a Europa] e dos discursos de Herman Van Rompuy - define a união como "um estado de transição permanente" e a política como "a forma como uma sociedade se ocupa da incerteza". Por tudo isso, "o projeto europeu está destinado a ter regras cambiantes, porque não se pode antecipar a criatividade da história, nem as mil faces da crise". "O urgente", dispara, "é voltar a conquistar as pessoas: isso não pode ser feito sem um plano geral e sem liderança."
O analista Moisés Naím reforça essa perspectiva. "Nem as instituições europeias nem os líderes políticos nacionais têm hoje poder suficiente. Nem sequer Merkel pode governar sem coalizão. Daí essas decisões tardias e ineficazes, daí a enfermidade da vetocracia, da qual a UE não consegue se livrar. A Europa foi forte quando teve lideranças fortes. A chapa atual em Bruxelas - Barroso, Ashton, Van Rompuy - não dá mais."
"Sem líderes é impossível acometer o maior desafio que a UE tem pela frente: reconquistar os europeus", acrescenta Eneko Landáburu, ex-alto funcionário da Comissão.
Esse é, em grandes traços, o desafio. "Toda essa nova linguagem, esse conjunto de siglas que ninguém é capaz de explicar, é na realidade alta política disfarçada de tecnicismo. Os mecanismos de resgate (EFSF e MEDE), o Semestre Europeu, o Six Pack, o Two Pack, o Fiscal Compact, os resgates e a troica, o OMT que permite ao banco central comprar títulos: ninguém pode contar uma história com esse vozerio; mesmo assim, entretanto, esse monte de siglas pode funcionar. Onde estão os líderes capazes de armar com isso um discurso que acenda os europeus?", pergunta-se Joachim Bitterlich, ex-assessor de um dos grandes: Helmut Kohl.
O mundo não está em crise, mas a Europa sim, está. Não é econômica, ou não é só econômica: é uma crise política, institucional e sobretudo de governança. E de passagem é uma espécie de vingança da história, da democracia e da geografia: inscreve-se em um movimento telúrico que está levando o centro do mundo para o Pacífico.
"A aceleração das mudanças no mundo pega a Europa com o pé errado, com um líder - a Alemanha - que só está no curto prazo: em seu curto prazo. E em meio à destruição desse precário equilíbrio europeu que sempre havia existido entre responsabilidade e solidariedade. Hoje ninguém confia em ninguém: assim não pode haver solidariedade nem responsabilidade", afirma o sociólogo José María Maravall.
Além da política, ou exatamente porque brilha por sua ausência, o futuro é difuso. André Sapir, do grupo de pensadores Bruegel, aponta que o cenário central para a zona do euro continuará consistindo em sair do ritmo durante cinco anos: "O preocupante é que continua sem haver consenso sobre a natureza e as causas da crise: isso explica por que só podemos aspirar a sair do ritmo". É verdade que a UE escorou o edifício, mas continua havendo defeitos de estrutura e existe o risco de que as melhoras "descarrilem por causa de acidentes econômicos ou políticos", avisa.
Daren Acemoglu, autor de um dos livros fundamentais dos últimos tempos - "Por qué fracasan los países" - é dos que afirmam que a segunda refundação da UE "está aí". Em uma conversa com este jornal, Acemoglu via duas revoluções entre as últimas novidades europeias: a união bancária e os exames prévios dos orçamentos nacionais. A união bancária, em especial, pode ser uma troca de pele, uma mudança na natureza da Europa. O clube do euro sempre foi obcecado pelos vícios públicos e a inflação, uma espécie de herança da história alemã.
O euro se dotou de mecanismos de controle do setor público (de credibilidade duvidosa, como já se viu em Maastricht); supunha-se que os mercados se autorregulassem e que os vícios privados se corrigissem sozinhos: não era preciso prestar atenção nisso. Mas a crise está mudando essa abordagem.
"Se afinal a união bancária não reduzir sua ambição, a Europa experimentará uma mudança substancial que pode ajudá-la a corrigir seus desequilíbrios", prevê Acemoglu. "Uma certa quantidade de transferências é inevitável, mas creio que isso pode ser mantido em um nível tolerável para os credores, desde que se façam as mudanças institucionais adequadas - em especial a união bancária, e que as políticas dos países periféricos voltem a estar sob controle", acrescenta. "Não creio no colapso do euro; entretanto, é preciso reduzir a fonte inesgotável de instabilidade que é o projeto europeu atual, e para isso a chave é a união bancária."
A Europa, enfim, está a caminho de despertar se nada for distorcido. Para isso, o papel do BCE é essencial como supervisor bancário.
"É preciso continuar abordando as finanças públicas e fazer reformas, mas com a união bancária a Europa também põe um olho em outras fontes de vulnerabilidade. Para o BCE, isso será uma imersão na realidade, a queda do Olimpo. O futuro depende de como Draghi administrará isso no outono", concluiu uma fonte comunitária.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Nenhum comentário:
Postar um comentário