sábado, 23 de novembro de 2013

Paulo Cesar de Araújo, autor da biografia de Roberto Carlos: "Pá de cal em 1968"  
Ricardo Setti - VEJA

SÃO CENSORES, SIM -- A passeata contra a guitarra elétrica (Foto: Wilman / UH / Folhapress)SÃO CENSORES, SIM — A passeata contra a guitarra elétrica (Foto: Wilman / UH / Folhapress) 
PÁ DE CAL EM 1968
O autor da biografa proibida de Roberto Carlos faz um balanço da atividade dos artistas da MPB que se mobilizaram pela censura e conclui: é o fim de um mito
Paulo Cesar de Araújo - VEJA
A mobilização de um grupo de artistas contra biografas não autorizadas é o episódio mais constrangedor da MPB desde a chamada “passeata contra as guitarras elétricas”, em 1967. Naquele ano, na tarde de 17 de julho, astros e estrelas de nossa música saíram pelas ruas de São Paulo com palavras de ordem contra um dos símbolos do “imperialismo ianque”.
Do ato participaram nomes como Gilberto Gil, Edu Lobo, Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues e Zé Kéti, além de integrantes dos conjuntos Zimbo Trio e MPB4. de bandeirinha do Brasil na mão, os artistas entoavam o Hino da Frente Única, tema do programa que apresentavam na TV Record:
“moçada querida / cantar é a pedida / cantando a canção da pátria querida / cantando o que é nosso / com o coração”.
Na época, Roberto e Erasmo Carlos, ídolos da Jovem Guarda, estavam do outro lado do ringue e procuraram manter distância dos manifestantes. “Fiquei escondido dentro de casa, debaixo da cama, porque se eu aparecesse ali eles poderiam até me linchar”, brincou Erasmo, ao recordar o episódio.
Embora fosse do grupo da MPB, Caetano Veloso não participou da passeata, guiado pela lucidez da cantora Nara Leão. “Hoje, é muito óbvio, mas na hora não tanto assim, e Nara me ajudou a compreender o absurdo daquela posição.” Segundo Caetano, que acompanhou a passeata da janela de um hotel, Chico Buarque ameaçou desfilar, mas desistiu: “Chico chegou a caminhar um pouquinho na rua. Ele deu uma idazinha rápida e saiu”.
A unidade que faltou no episódio da passeata seria conseguida mais de quatro décadas depois, na defesa de uma ideia ainda mais reacionária: a necessidade de autorização prévia e de pagamento de royalties (ou dízimos) para escrever biografas no Brasil.
“A liberdade de expressão, sob qualquer circunstância, precisa ser preservada. Ponto. No entanto…” essas frases de Djavan, o primeiro artista do Procure Saber a se manifestar sobre o tema, no início de outubro, deram a senha do que seria a atuação de todos no episódio.
O que se viu a partir daí foi uma série de justificativas frágeis, inconsistentes, algumas contraditórias, seguidas de recuos ou mudanças de tom que culminaram na saída de Roberto Carlos do grupo e em pedidos de desculpa de Chico Buarque e de perdão de Caetano Veloso.
A tese do Procure Saber foi a mesma usada por Roberto Carlos contra mim em 2007: meu livro era não autorizado e o artista não estava recebendo nenhum dividendo pela vendagem de Roberto Carlos em Detalhes.
Que um ídolo como Roberto pensasse assim já seria um absurdo. Que essa ideia fosse também abraçada por artistas de vanguarda deixou a todos perplexos. “Apenas se Chico vier a público afirmar que apoia essa causa é que isto será fato. Por enquanto, só é possível crer que estão usando o nome dele em vão”, disse, incrédulo, o jornalista Luiz Fernando Vianna.
Roberto Carlos, em um vídeo do Procure Saber: episódio constrangedor da MPB (Foto: Reprodução / Procure Saber)
Roberto Carlos, em um vídeo do Procure Saber: episódio constrangedor da MPB (Foto: Reprodução / Procure Saber)
O próximo a se manifestar não foi Chico, e sim Caetano Veloso, contra a pecha de censores atirada sobre eles. “Censor, eu? Nem morta!”, afirmou, embora confirmasse que se alinhava aos colegas “que submetem a liberação das obras biográficas à autorização dos biografados”.
Em seguida, Gil argumentou que, no confronto entre o interesse público e o privado, o último é que deve prevalecer — a mesma opinião, aliás, expressa na sentença do juiz Maurício Chaves de Souza Lima em liminar que proibiu minha biografa de Roberto, em 2007.
Quando Chico Buarque finalmente se manifestou, o que se viu foi mais constrangimento. Ele considerou justo as herdeiras de Garrincha receberem dinheiro pela biografa não autorizada do jogador.
“Se defende que as filhas do Garrincha recebam pelo trabalho árduo do biógrafo, já pensou em remunerá-las por ter citado o Mané junto com Pelé, Didi, Pagão e Canhoteiro? O Futebol, sua música, não tem também ‘fins comerciais’?” — perguntou o jornalista Mário Magalhães, biógrafo de Marighella, referindo-se à canção de Chico que cita todos esses jogadores.
Sem argumentos consistentes, a proposta do Procure Saber começava a fazer água. Os artistas decidiram mudar o tom, parecendo agora mais flexíveis. Isso se explicitou no dia 29 de outubro, com a divulgação de um vídeo em que afirmam querer afastar toda e qualquer hipótese de censura prévia. “Não somos censores”, diz, ali, Roberto Carlos — afirmação, porém, que se choca com o fato de sua biografa não autorizada continuar banida.
As estrelas do Procure Saber e diversos líderes políticos do Brasil fazem parte da mítica geração de 1968. Na introdução de 1968 — O Ano que Não Terminou, Zuenir Ventura diz que, embora aquela geração não tivesse conseguido realizar seu sonho de revolução total, havia deixado um importante legado: “arriscando a vida pela política, ela não sabia, porém, que estava sendo salva historicamente pela ética. O conteúdo moral é a melhor herança que a geração de 68 poderia deixar para um país cada vez mais governado pela falta de memória e pela ausência de ética”.
Bem, o livro de Zuenir foi publicado em 1988, quando o presidente era Sarney e a oposição do PT e do recém-fundado PSDB tinha a ética como uma de suas principais bandeiras. Hoje, após tantas e tenebrosas transações, esse legado da ética na política já não cola tanto na geração de 68.
A aura de resistentes e transgressores, porém, ainda pairava em torno de figuras da cultura como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Depois do episódio das biografas, essa imagem também ficou arranhada.
Nesse sentido, podemos dizer que o ano de 1968 finalmente terminou — em 2013. E, até aqui, de forma melancólica.

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