Das origens tribais à elite nacional-socialista
O fato de a Alemanha ter tido uma origem tribal e não civilizada, fora das fronteiras do Império Romano e da língua latina, são fatores que a levaram a 1945. A tribo Germânica dava segurança e significado a cada indivíduo através da absorção pelo grupo. (...) o status social era perfeitamente conhecido, dentro de um sistema totalmente absorvente e totalitário.
Carroll Quigley
Todas as ações têm seu lugar, inclusive o crime. A palavra crime vem de um mundo do passado. Existem apenas ações positivas e negativas.
Adolf Hitler
Quigley (1) mostra que “a fragmentação da tribo germânica no período das migrações e sua absorção numa nova estrutura social – o Império Romano – e a subseqüente e quase imediata fragmentação do último, causaram um duplo trauma dos quais a nação não se recuperou até hoje: deixou os indivíduos sem a anterior segurança e sentido de vida”.
As relações entre os indivíduos passaram a depender exclusivamente da confiança nas lealdades pessoais: “qualquer violência, ato criminoso, crueldade ou bestialidade ficava justificada pelos laços de lealdade”. O resultado pode ser encontrado na primeira obra literária germânica, a Niebelugenlied, segundo Quigley “um hospício dominado por estes laços de lealdade, num final não totalmente diferente da Alemanha de 1945” (2).
A importância destas origens tribais está principalmente em que uma das idéias de Himmler era a de recriar nas SS uma nova tribo germânica, “racialmente pura” e também baseada exclusivamente nos laços de fidelidade e lealdade (cf. Steiner,loc. cit, p. 75). A fidelidade não era a um grupo qualquer, mas ao grupo que tinha como raiz o Blut und Boden, (como abordei na Parte 2). Himmler, em discurso aos membros do Leibstandarte-SS ”Adolf Hitler” em 07/09/1940 disse:
Criaremos uma Ordem (de sangue bom) que espalhará a noção do sangue Nórdico e atrairá todo sangue Nórdico do mundo para nós, privará nossos oponentes deste sangue, permitindo-nos incorporá-lo de tal maneira que o sangue Nórdico, o sangue Germânico (...), nunca mais lutará contra nós em grandes massas ou qualquer quantidade expressiva” (3).
Hitler foi claro ao dizer que o conceito de nação era um expediente da democracia e do liberalismo:
“Devemos nos livrar desta falsa concepção e por no seu lugar a concepção de raça que ainda não foi politicamente utilizada. A Nova Ordem não pode ser concebida em termos de fronteiras nacionais dos povos com um passado histórico, mas em termos de raça, que transcende essas fronteiras”.
“Com o conceito de raça o Nacional-Socialismo levará sua revolução para o exterior e reformará o mundo”.
“O problema é: como poderemos interromper a decadência racial? (...) certamente não pela democracia e igualitarismo (...) devemos permitir que as massas sigam seu caminho, ou devemos barrá-la? (...) devemos simplesmente formar uma seleta companhia de reais iniciados? Uma Ordem de sangue puro, a irmandade dos Templários em torno do Graal?” (4).
Tanto os gregos como os romanos viveram sob sistemas totalitários e o Ocidente escapou da fascinação com o totalitarismo, segundo Quigley, porque
“os hebreus se recusaram a confundir Deus com o mundo, ou religião com o estado, e sendo Deus transcendental, todas as demais coisas devem ser em algum grau, incompletas e, portanto, imperfeitas. Seguindo esta tradição Cristo afastou-se do estado, pregando “dai a César que é de César e a Deus o que é de Deus” (loc. cit. P. 410).
Acrescenta Quigley: “os germanos, assim como os russos, só conheceram o cristianismo pós-Constantino quando os imperadores tentavam preservar o sistema totalitário de Diocleciano, agora em termos cristãos, não mais pagãos”.
São traços característicos dos alemães, segundo diversos autores, o comodismo, a aversão à necessidade de tomar decisões, o que requer uma individualidade autoconfiante. Por esta razão, enquanto os ocidentais herdaram da Antiguidade Clássica o senso de individualidade e sistemas pluralísticos de organização social, os alemães viam nesta mesma Antiguidade os traços totalitários que as caracterizava politicamente.
A Alemanha só viria a conhecer alguma unidade com a dissolução do Império Carolíngio. Pelo Tratado de Verdun (agosto de 843), os filhos de Luis, o Piedoso, netos de Carlos Magno, dividiram a Europa em três partes, cabendo a Luis, o Germânico, a chamada Francia Orientalis: a porção a leste do Reno e ao Norte da Itália, precursora do conglomerado medieval de estados conhecidos como o Sacro Império Romano.
A “elite” nacional-socialista
Os homens da era que se aproxima transformarão os monumentos dos heróis e sendas de recordação nos locais de peregrinação de uma nova religião. Lá, o coração dos Alemães será sempre remodelado em busca de um novo mito.
Alfred Rosenberg, The Myth of the 20th Century
Não cabe aqui estudar a estratificação da sociedade alemã, nem mesmo a interna do Partido Nazista, mas nos dedicarmos diretamente à dita “elite”: as SS (Schutzstaffel: destacamentos de Segurança/Proteção). Desde o início a liderança exigiu de seus membros desenvolverem individualmente uma “consciência de superioridade” (Herrenbewusstsein) e como grupo a “consciência de elite” (Elitebewusstsein), já antes de Himmler ser nomeado Reichsführer. Sob o comando de Julius Schreck em 1925 eram convocados somente homens selecionados entre os mais confiáveis membros do partido (Steiner, loc. cit.). Para manter viva esta mentalidade foram criados símbolos e hinos que reavivavam seu papel extraordinário dentro do partido e do “Reich de mil anos” (5).
Em seu símbolo, as duas letras ‘s’ era prateadas, em caracteres rúnicos na forma de dois raios, derivados de antigas línguas germânicas ou escandinavas que possuíam poderes mágicos quando pronunciados ou escritos dentro de certos ritos pagãos. Veremos adiante que modernamente lhe foram atribuídas o significado de sigrune, um signo de vitória, a vitória das SS (6). As SS eram uma ordem com suas próprias leis e rituais de militantes ideológicos que se colocavam a serviço de uma verdade eterna. Várias ordens militares serviram de modelo para sua formação, mas as principais foram a Companhia de Jesus e a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos.
“... elas nunca serviram como protótipos dogmáticos, mas como exemplos históricos parciais que podiam ser arranjados de maneira diferente para servir aos propósitos nazistas, assim como a Legião Estrangeira, o sistema soviético de comissários políticos, o serviço diplomático Britânico e os Samurais. (Embora)Hitler chamasse Himmler de “Inácio de Loyola das SS”, a Companhia o amedrontava como aos nazistas, por sua estrita obediência exclusivamente ao Geral da Ordem e ao Papa, sem reconhecer nenhuma outra autoridade” (7).
Himmler teve uma educação estritamente católica, mas desde cedo se interessou por sociedades místicas (8), assim como o próprio Hitler. Em suas conversas com Rauschning, Hitler disse:
“Estamos no fim da Era da Razão. O intelecto se tornou autocrático e uma doença. (...) Uma nova era de interpretação mágica do mundo está chegando, uma interpretação em termos de vontade e não de inteligência. (...) Existe uma ciência nórdica, uma ciência nacional-socialista, as quais se opõem à ciência judaico-liberal. (...) Nos aproximamos das realidades do mundo com fortes emoções e ações. Somente o homem que age pode se tornar consciente do mundo real”.
(Rauschning, loc. cit., pp. 223-224).
Este homem em ação era o ideal das SS. Himmler, através de seleção e procriação (Auslese und Zucht) quis cultivar um novo tipo humano – um guerreiro leal, obediente, duro e disposto ao sacrifício – um scholar e administrador ao mesmo tempo, que fosse capaz de enfrentar as enormes tarefas com que iria se defrontar, uma comunidade de vanguarda que seria o principal agente de criação do futuro Reich. As SS eram “simultaneamente tanto os meios para alcançar determinados fins, como os próprios fins que seriam realizados por meio delas”.
(Ziegler, loc. cit, p.51n, citando Yoah Meisler in Himmler’s Doctrine of Leadership).
Muitos confundem as SS com uma polícia política de elite. Nada mais errado. O que se pretendia era construir um estado dentro do Estado até que as SS constituíssem o próprio estado nacional-socialista, assumindo toda a burocracia estatal aliada a uma liderança carismática. O princípio geral era o fürherprinzip em todos os escalões. ”As SS devem evoluir de uma tropa de guarda-costas para serem a guarda da nação, e daí para a guarda da raça nórdica, tendo que liderar a raça pura (Herrenvolk) de 200 milhões de alemães (9).
A composição social média era de indivíduos relativamente jovens, em torno de 38 anos, instrução medíocre, mas não elementar. Artesãos, principalmente professores e profissionais liberais, e os empregados agrícolas eram pouco representados (10). Himmler assumiu suas funções em 06 de janeiro de 1929, aos 29 anos, e esta data marca o verdadeiro nascimento das SS.
Os indivíduos que se sentiam atraídos eram em sua maioria marginais em busca de uma identidade, com um baixo conceito de si mesmos, inseguros e necessitados de relações de dependência e constante reasseguramento. Só se sentiam seguros dentro de um sistema de rígida hierarquia, no qual as responsabilidades e as decisões eram delegadas aos superiores.
Segundo Steiner,
“parece que só se sentiam seguros quando lhes era permitido funcionar numa coletividade protegida na qual eles tivessem apenas de obedecer a ordens claras e bem definidas. As regras, valores e normas eram aceitos como um código de honra a ser obedecido sem pestanejar. As SS eram essencialmente uma organização anti-intelectual. Individualismo e independência eram cargas muito pesadas e indesejáveis. (...) Deixavam-se guiar por um conjunto de regras e regulamentos opressivos. (...) Deviam ser honestos, decentes, leais e manter camaradagem com os membros de seu próprio sangue e ninguém mais”.
Hitler divisava as futuras SS como um corpo técnico de primeira ordem, especialmente treinado, tropas de assalto consistindo de camaradas que serviram anos ao partido, os quais representariam o espírito nacional-socialista na defesa da nação.
Notas:1 - Tragedy & Hope: A History of the World in Our Time, Macmillan Co./Collier-Macmillan Ltd., 1966: NY-London
2 - A obra da Wagner baseada nestes contos primitivos, a série operística Der Ring des Niebelungen, acaba com oGötterdämmerung, o crepúsculo ou queda dos Deuses, o final apocalíptico semelhante ao fim da Alemanha em 1945.
3 - Cit. em Steiner, loc. cit., p 82. O Leibstandarte-SS ”Adolf Hitler” era o regimento especial das SS (Schutzstaffel) para guarda pessoal do Führer. Era a elite da elite. Standarten=regimento (300-500 homens), Comandante=Standartenführer.
4 - Herbert Rauschning, The Voice of Terror, J. P. Putnam’s Sons, 1940: NY. Título da tradução Americana de Grespräche mit Hitler, 1940: Vienna
5 - A idéia de um Reich de Mil Anos era movida pela nostalgia do I Reich, o Império fundado por Carlos Magno em 800 e desaparecido em 1806 pela vitória napoleônica de Austerlitz (1º de dezembro de 1805)
6 - Nos discursos de Hitler a saudação era “Sieg Heil” (salve a vitória). A saudação obrigatória entre quaisquer pessoas (Hitlergruß): Heil Hitler, às vezes era acrescida de Sieg. O nome próprio do grande herói da Nibelungenlied era Siegfried (vitória na paz).
7 - Herbert F. Ziegler, Nazi Germany’s New Aristocracy: the SS Leadership 1925-1939, Princeton, 1989: New Jersey.
8 - Werner T. Angress & Bradley F. Smith, Diaries of Heinrich Himmler’s Early Years, The Journal of Modern History, vol. 31, nº 3 (set/ 1959) pp. 206-274, University of Chicago Press. Ver também Steiner, loc. cit., pp. 54-55
9 - Konrad Heiden, A History of National Socialism, cit. em Ziegler, loc. cit., p. 38
10 - Ernest M. Doblin & Claire Pohly, The Social Composition of the Nazi Leadership, American Journal of Sociology, vol. 51,nº 1 (julho/1945) pp. 42-49, University of Chicago Press.