Khaled al-Hariri/Reuters
Voluntários da organização humanitária Crescente Vermelho carregam homem durante fuga de famílias da cidade de Muadhamiya: crueldade com idosos e crianças
Enquanto o mundo se volta para o desarmamento químico da Síria, milhares de pessoas no país enfrentam uma preocupação mais premente: a fome. Isoladas pela violência em curso, elas estão morrendo porque não têm acesso a suprimentos. Muitas não vão sobreviver ao inverno.Ibrahim Khalil, de três anos, sobreviveu aos ataques com armas químicas do dia 21 de agosto. Mas 10 dias depois, ele morreu de fome - assim como outra criança que morreu horas depois dele e uma terceira quatro dias depois, no subúrbio de Damasco de Muadhamiya.
Quando o mundo soube dos ataques com gás sarin em um subúrbio de Damasco no verão passado, houve indignação e a Síria foi levada a desmantelar o seu arsenal químico, missão que foi declarada terminada pela Organização para a Proibição de Armas Químicas na quinta-feira (31). No entanto, quase ninguém parece estar tomando conhecimento destas novas mortes. Depois de terem sido sitiadas por meses, impedidas de se abastecem de alimentos, eletricidade, água e qualquer forma de ajuda, as pessoas estão começando a morrer de fome.
As crianças também estão morrendo de fome em Yarmouk, na parte sul de Damasco, e em outros lugares cercados pelas tropas do governo. Mas em nenhum lugar a situação é tão crítica quanto em Muadhamiya, onde seis crianças morreram em meados de outubro "e dezenas já estão tão fracas que um resfriado comum as mataria", diz Amin Abu Ammar, um dos últimos médicos no subúrbio.
O fato do presidente Bashar Assad ter concordado em destruir seus arsenais de armas químicas foi uma boa notícia em uma guerra que não está produzindo qualquer outra notícia positiva. Na verdade, é muito boa, tão boa que os inspetores de armas químicas foram prontamente agraciados com o Prêmio Nobel da Paz e ficou a impressão de que a guerra havia terminado. Enquanto os governos europeus estão principalmente preocupados com jihadistas estrangeiros infiltrados na Síria, há cerca de 1.000 combatentes locais armados em Muadhamiya que nem sequer têm qualquer contato com as cidades vizinhas.
Protestos perto dos centros nervosos da Síria
A localização da cidade, que já abrigou mais de 60.000 pessoas, tornou-se sua ruína. Como em centenas de outras cidades em toda a Síria, os moradores de Muadhamiya manifestaram-se contra Assad na primavera de 2011. Mas de todos os lugares onde foram realizados protestos, Muadhamiya era o mais próximo de centros nervosos do regime: a sede da 4 ª Divisão Blindada do Exército sírio ao norte, os quartéis da Guarda Republicana a oeste e o "aeroporto do presidente" em Mezzeh, a nordeste.
Ou seja, Muadhamiya já estava cercada antes mesmo dos soldados chegarem. O fato de a população não ser pobre, e sim da classe média bem educada, tornou a situação ainda pior.
Muadhamiya tinha que ser subjugada. Quando o governo não conseguiu atingir esse objetivo, apesar das prisões em massa e dos tiros contra os manifestantes, decidiu tomá-la à força. E quando esse plano não pôde ser implementado, apesar dos morteiros e ataques aéreos, foram lançados foguetes armados com gás sarin sobre a cidade, matando 85 pessoas, de acordo com os médicos locais.
Mas o que as armas químicas não conseguiram alcançar está sendo realizado gradualmente pela fome: a aniquilação da cidade. E isso está acontecendo sem cruzar nenhuma "linha vermelha" de Washington ou qualquer clamor público em outros países - e mesmo sem os esforços de propaganda de Damasco para esconder o problema. "Deixe-os morrer de fome e, então, vão se render e levados a julgamento", disse um membro da recém-formada força paramilitar da fé alauíta de Assad, "Comitê de Defesa", a um repórter do "Wall Street Journal" no início de outubro.
Mesquitas são alvo de morteiros
O subúrbio de Muadhamiya está cortado do mundo exterior desde 18 de novembro de 2012. Os soldados nos postos de controle não permitem que qualquer pessoa entre ou saia. Os atiradores miram em qualquer um que tente cruzar as linhas. O comité de médicos contou 1.700 mortes desde o início da revolta, sendo 738 apenas desde o bloqueio. Quase todas as 22 escolas da cidade estão em ruínas. No início, as aulas foram realizadas em algumas mesquitas, mas isso foi interrompido quando a 4 ª Divisão lançou morteiros das colinas contra as mesquitas.
As últimas lojas fecharam em março porque não havia mais nada a ser vendido. A energia elétrica, o fornecimento de água e as redes de telefone foram cortados. Só há pão quando alguém consegue contrabandear um pouco de farinha. Assad transformou Muadhamiya em uma cidade fantasma.
"No começo, nós sobrevivemos com nossos suprimentos e aquilo que encontrávamos nas casas daqueles que fugiram", diz Ahmed Muadamani, que era empresário e hoje é membro do conselho revolucionário da cidade, responsável por contatos com o exterior por meio de uma das últimas conexões de Internet, por telefone via satélite.
"Então, muitas pessoas tentaram cultivar tomates e batatas em todos os terrenos disponíveis, mas houve várias mortes, porque os atiradores atiravam contra as pessoas nos campos e nas hortas". As mulheres eram mortas com um tiro no peito e os homens, na cabeça, diz o médico, acrescentando que agora não há mais nada para se comer durante o inverno.
Por um tempo, amigos e parentes dos moradores sitiados podiam passar de carro pela estrada entre Damasco e as Colinas de Golã, perto Muadhamiya, e atirar sacos de comida pelas janelas. Os moradores, então, executavam a tarefa arriscada de recolher os sacos. Mas a estrada está fechada há seis meses, e há franco-atiradores posicionados na região.
"Não há mais cordeiros"
Eid al-Adha, a Festa do Sacrifício, que se baseia no conto bíblico de Abraão que, a mando de Deus, saiu para sacrificar seu filho Isaac, e só foi impedido por um anjo no último minuto, foi realizada em meados de outubro. No islã, a história é similar ao relato bíblico, com a diferença que Abraão é conhecido como Ibrahim e Isaac é Ismail. Além disso, a salvação do filho é tradicionalmente comemorada com o abate de um animal, geralmente um cordeiro, e a carne é distribuída aos pobres.
Amigos da Síria na Alemanha queriam dar aos moradores famintos de Muadhamiya um cordeiro, ou mais de um, se possível, para comemorar o festival. Usando o Skype, eles perguntaram como fazer isso e para quem enviar o dinheiro. Eles receberam a resposta depois de três dias: "Não há mais cordeiros. Nem um único em toda a cidade. Nós já comemos tudo o que rasteja, corre e voa. E não é possível comer dinheiro..."
Até 40 mil pessoas estão presas em Yarmouk, que só está sitiada há três meses. Para a Festa do Sacrifício, um imã local emitiu uma fatwa, ou edital religioso. "Nós permitimos o consumo de cães, gatos, burros e cadáveres", declarou o xeque Salah al- Khatib. "Caso contrário, não há mais nada. Quanto tempo você pretende ficar parado olhando?", perguntou aos muçulmanos que celebram o feriado em todo o mundo. "Até comermos uns aos outros?"
Os últimos animais que restam em Muadhamiya são três vacas, embora tenha se tornado perigoso catar capim para os animais, porque os campos estão dentro da faixa alvo dos atiradores. No entanto, sem as vacas não haveria leite para as crianças.
Todas as tentativas de organizar subsistência estão falhando, uma após a outra. Os subnutridos estão ficando doentes mais rapidamente, há poucos remédios. Os dois hospitais clandestinos quase não têm eletricidade, porque não há mais diesel para os geradores. Os mesmos soldados que estão atirando contra eles, por vezes, vendem açúcar por $ 20 euros (cerca de R$ 60) o quilo, "mas nunca arroz ou leite", diz o médico.
Pedido de ajuda humanitária
Nos últimos meses, o Crescente Vermelho tentou levar comida para a cidade sete vezes, mas sem sucesso. O Departamento de Estado dos Estados Unidos e as Nações Unidas apelaram a Damasco nas últimas semanas para permitir que a ajuda humanitária chegasse aos civis sitiados, mas não houve reação por parte do governo sírio. A posição oficial é que aqueles cercados por tropas do governo são todos terroristas ou seus defensores.
Os subúrbios do nordeste de Damasco também estão cercados há meses. Mas eles são maiores, há rotas de contrabando e, acima de tudo, não há atiradores para disparar contra as crianças enquanto catam lenha ou capim para o gado. O cerco tornou-se uma arma onipresente, que também é utilizada pelos rebeldes, que cercaram a parte ocidental de Aleppo. A diferença é que os civis não são impedidos de sair, e os alimentos podem entrar.
Em meados de outubro, depois de semanas de negociações, dois grupos, totalizando cerca de 1.600 civis, foram autorizados a deixar Muadhamiya. Eles incluíam mulheres e crianças, mas não homens entre as idades de 14 e 60. Quando um terceiro grupo chegou ao posto de vigilância ocidental em 16 de outubro para ser evacuado como combinado, as unidades de artilharia nas colinas da 4 ª divisão abriram fogo sem qualquer aviso. Quatro pessoas morreram e várias ficaram gravemente feridas. O resto fugiu de volta para a cidade, onde ainda há 10 mil pessoas.
Rassak Abdul al- Hamshari, 65 anos, estava no último grupo que foi autorizado a sair. Ele chegou ao Líbano, a uma pequena vila no Vale do Bekaa, perto da fronteira. Ele agora está morando em um porão de concreto inacabado compartilhado por 10 pessoas, o que é um luxo comparado com a vida em Muadhamiya. "Pelo menos não há bombardeios!", diz Hamshari.
Seu filho está morto, mas ele tem a esperança que sua nora consiga escapar. Ele não tem ilusões sobre os homens que ainda estão em Muadhamiya. "Eles são nossos filhos, primos e netos, e nunca vão desistir, mesmo que todos morram. Mas o que eu poderia ter feito lá? Eu sou velho e inútil".
Quando soube da "fatwa dos gatos" em Yarmouk, ele riu breve e intensamente. "É uma boa ideia. Mas quando saímos, eu já não via gatos nas ruas há semanas. Já tinham sido todos comidos".
Tradutor: Deborah Weinberg
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