sábado, 23 de novembro de 2013

Medicos acusam OMS de negligência em surto de poliomielite na Síria
Christoph Reuter - Der Spiegel
Valentina Petrova/AP As condições precárias de higiene em bairros controlados pelos rebeldes e centros de refugiados fazem do surto de poliomelite uma "bomba relógio" na região 
As condições precárias de higiene em bairros controlados pelos rebeldes e centros de refugiados fazem do surto de poliomelite uma "bomba relógio" na região
A poliomielite está ensaiando seu retorno em uma região dizimada da Síria, mas as delicadas políticas vigentes durante a guerra estão dificultando a realização de campanhas de vacinação. E enquanto a ameaça de uma epidemia da doença paira sobre a região, a raiva em relação à inércia da OMS (Organização Mundial de Saúde) vem crescendo.
O médico sírio Khalid Milaji está muito irritado com a entidade. "Eles sabiam que isso ia acontecer!", afirma ele. "Faz mais de um mês que nós estamos alertando o pessoal da OMS, dizendo que a pólio está se espalhando, mas eles se recusam a enviar a vacina!" Milaji faz parte da Força Tarefa de Controle da Poliomielite, um grupo que tenta conter uma nova epidemia de poliomielite na Síria com a ajuda do Ocidente – e ele está furioso com o fato de a organização estar resistindo a seus pedidos de ajuda.
A OMS é a mesma entidade da ONU (Organização das Nações Unidas) que vem realizando uma campanha extremamente bem sucedida contra a paralisia infantil, ou poliomielite, desde 1988. Nesse período, os casos de pólio foram reduzidos em 99% e o número de países afetados diminuiu de 125 para meia dúzia.

E, no entanto, durante várias semanas a OMS impediu a realização de uma campanha de vacinação destinada a conter o surto atual – que provavelmente é o mais perigoso dos últimos anos –, registrado na província síria de Deir ez-Zor. A OMS até tentou barrar a análise de amostras de vírus.
O motivo: a OMS tem uma política de cooperar exclusivamente com o governo de Damasco, mesmo em tempos de guerra, apesar do fato de o governo central ter desistido há muito de Deir ez-Zor. O exército do presidente Bashar al-Assad controla apenas dois distritos da capital provincial, enquanto o restante da província está nas mãos dos rebeldes.

Um novo e perigoso surto

Nos últimos dois anos, a província tem sido dizimada pelos bombardeios. Não há mais energia elétrica, assistência médica, rede de telefonia nem estação de tratamento de esgoto. Cerca de meio milhão de refugiados estão abarrotando as cidades ao longo do rio Eufrates, que é onde os primeiros casos de pólio foram registrados, em setembro passado. Mais casos foram detectados nas províncias Idlib e Aleppo no meio da semana passada, o que elevou a contagem total de novos casos registrados para 48 até sexta-feira passada – e novos casos têm aparecido diariamente.
A poliomielite tornou-se um novo ponto de discórdia em meio à guerra síria, colocando os CDCs (Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças) dos Estados Unidos, os médicos sírios e o Ministério da Saúde da Turquia contra a OMS e o governo de Damasco.
No verão, especialistas em doenças infecciosas dos CDCs – que estavam cooperando com os médicos sírios de províncias do norte e do leste do país, das quais as forças de Assad foram expulsas – começaram a desenvolver o sistema de alerta precoce EWARN. As equipes de hospitais improvisados receberam telefones com conexão via satélite e foram instruídas a relatar, o mais cedo possível, quaisquer casos suspeitos de cólera, tifo, poliomielite e de outras doenças infecciosas para que a propagação não detectada dessas moléstias possa ser evitada. "Temos monitorado 10 doenças desde julho passado", disse o doutor Mohammed Alsaad, diretor do EWARN, "para que possamos reagir imediatamente".

Uma batalha envolvendo testes clínicos

Os médicos que fazem parte dessa cadeia de alerta precoce detectaram um surto de poliomielite na cidade de Sbichan, na região sul da província, em setembro e, no início de outubro, levaram as primeiras amostras de fezes para a Turquia. "Durante o percurso até a Turquia, nós contatamos os CDCs para descobrir qual laboratório de Gaziantep (a cidade grande mais próxima) poderia analisar as amostras", disse o dr. Haytham Shaqla, que acompanhou o transporte do material. Mas, ao chegarem ao hospital que havia sido recomendado, eles foram impedidos de entrar. "A administração nos disse que a OMS havia proibido expressamente o laboratório de aceitar e testar nossas amostras".
Um dos médicos da equipe, no entanto, tinha boas conexões com o governo provincial de Gaziantep e ligou para o governador, que, por sua vez, contatou as autoridades da capital, Ancara. O Ministério da Saúde turco enviou imediatamente uma equipe para o sul da Turquia para pegar as amostras.

A OMS disse que, ao transportarem a poliomielite para a Turquia, os sírios tinham retirado as amostras da jurisdição da divisão da OMS no Oriente Médio, que inclui a Síria, e as transportado para a área pertencente à divisão europeia, que inclui a Turquia. O governo turco, no entanto, estava interessado em resolver a situação rapidamente e testou as amostras de fezes das crianças doentes.

Damasco muda de opinião

A pedido da OMS, outras amostras de Sbichan foram enviadas para Damasco. Os médicos sírios receberam os resultados oficiais do Ministério da Saúde da Síria quando se encontraram em Gaziantep, em 14 de outubro passado, para discutir o que fazer em relação ao surto. O ministério alegou que as amostras não continham vírus da poliomielite, mas, em vez disso, continham evidências de envenenamento por água contaminada com petróleo e da síndrome de Guillain-Barré, uma rara doença neurológica.
Quatro dias depois, funcionários dos CDCs em Atlanta, nos EUA, informaram os médicos Gaziantep sobre os resultados de Ancara. Todos os três casos haviam testado positivo para poliomielite. Testes adicionais, realizados em um laboratório de referência holandês, demonstraram que o vírus da pólio detectado nas amostras era do "tipo 1", que também tinha sido detectado recentemente ou sido repetidamente registrado em Israel, no Egito e no Paquistão.
"A OMS já sabia disso, mas não nos disse nada", disse Milaji. "Por que eles estão nos ignorando? Eles nem sequer falavam com a gente até recentemente, apesar de as câmaras municipais locais e os rebeldes constituírem a única forma de ordem governamental em Deir ez-Zor. E fomos nós, no final das contas, que descobrimos todos os casos".
Perto do final de outubro passado, só depois de casos adicionais terem vindo à tona, impedindo que a epidemia continuasse sendo mantida em segredo, o Ministério da Saúde de Damasco descobriu, de repente, o vírus da poliomielite nas amostras. Finalmente, em 29 de outubro, a OMS anunciou oficialmente o início da epidemia. Ainda é um mistério por que isso levou semanas para acontecer. Os médicos consideram o comportamento da OMS absolutamente negligente.

"A ponta do iceberg"

Isso porque a poliomielite, uma vez contraída, é incurável. Mas uma simples vacina oral é o suficiente para prevenir a infecção. Embora apenas uma em cada 200 crianças infectadas, em média, desenvolva o sintoma mais grave da doença, que é a paralisia permanente, e outras experimentem apenas sintomas leves ou até mesmo nenhum sintoma, qualquer pessoa infectada pode transmitir o vírus. É por isso que uma taxa de vacinação mínima de 95% é considerada necessária para evitar a propagação da doença.
O surto sírio contém todos os ingredientes para se transformar em uma epidemia desastrosa: guerra, cerca de 5 milhões de desalojados domésticos que vivem abarrotados e em condições sanitárias deploráveis, um grande grupo de pessoas em constante movimentação e até 4.000 pessoas por dia fugindo através das fronteiras para países vizinhos. Em grandes partes da Síria não há atendimento médico e campanhas de vacinação não são realizadas nesses locais há dois anos.
O médico Bruce Aylward, diretor-geral assistente da OMS e desde 1998 chefe da campanha de combate à poliomielite da organização, diz que o surto é uma bomba-relógio. Para ele, os casos confirmados são "apenas a ponta do iceberg", e todo o Oriente Médio corre o risco de sofrer uma epidemia maciça. Agora a OMS planeja vacinar todas as crianças em círculos concêntricos ao redor do epicentro do surto, o que equivale a 20 milhões de crianças que vivem na Jordânia, Líbano, Turquia e em outros países vizinhos.

Crise no epicentro

Mas pouco está acontecendo no próprio epicentro da epidemia. Todas as manhãs centenas de mães se aglomeram em frente das enfermarias improvisadas aguardando por uma vacina que não chega. Em turnos quinzenais, uma equipe de médicos da Força Tarefa de Controle da Poliomielite vão à região para acompanhar o desenvolvimento da epidemia e realizar uma campanha de informação utilizando o rádio, as mesquitas e folhetos para espalhar sua mensagem. Os médicos aconselham os moradores a lavar as mãos após usarem o banheiro e antes de comer. "Mas a coisa toda vira uma piada quando você diz às pessoas para que bebam apenas água limpa", diz o doutor Bashir, diretor da força-tarefa. "Oitenta por cento das pessoas que vivem aqui obtêm sua água potável do Eufrates, onde todo o esgoto não tratado é despejado. Estamos agora aconselhando as pessoas a desinfectarem a água, adicionando duas colheres de água sanitária para cada mil litros. A prática não é exatamente saudável, mas o que podemos fazer?"
A força-tarefa criará uma cadeia de refrigeração para possibilitar o transporte e o armazenamento das vacinas, diz Bashir, mas a OMS primeiro precisa liberar as doses. "Nós temos um plano completo, temos os centros de saúde e nós podemos recrutar os mil voluntários necessários para realizarmos uma campanha porta-a-porta – mas temos que esperar". Embora Bashir reconheça o dilema vivido pela OMS, ele não concorda com a decisão da organização. "Se eles nos aceitarem", diz ele, "eles estarão quebrando regras internacionais. Se eles não nos aceitarem, ninguém vai brecar a epidemia. O regime não tem interesse em fazê-lo, pois as crianças foram vacinadas nas áreas que ele controla".

"O governo nunca mentiu"

Mas a OMS continua insistindo em cooperar apenas com o governo Assad e mais ninguém.
"Se nós entregássemos vacinas através da fronteira turca, esse seria o limite para Damasco", disse Aylward. "E o governo sírio não aceitará os resultados de outros laboratórios. Na semana passada, eu conheci o ministro da Saúde da Síria, e o governo nos assegurou que vai vacinar todas as crianças do país. Eles disseram que vão fazer isso. Então nós precisamos pressioná-los o máximo possível. Eles disseram que vão fazer, por isso vamos responsabilizá-los. O governo nunca mentiu para nós".
Esta é uma hipótese estranha, considerando-se o fato de que o regime vem bombardeando hospitais há mais de dois anos, proibiu equipes médicas de tratar vítimas de ataques aéreos em hospitais do governo e realizou assassinatos seletivos de médicos e farmacêuticos que tratam e fornecem medicamentos para pessoas que vivem em áreas controladas pelos rebeldes.
Em 4 de novembro passado, o vice-ministro das Relações Exteriores da Síria, Faisal Muqdad, disse que o governo concede acesso humanitário aos cidadãos sírios em todas as regiões do país e que nunca impediu a entrada das remessas de ajuda. Mas já faz alguns meses, por exemplo, que mais de 600 mil pessoas que vivem nos subúrbios do nordeste de Damasco estão completamente desconectadas do mundo externo. Forças do regime não estão sequer permitindo que alimentos, para não falar de medicamentos e vacinas, sejam levados para essas áreas. Em setembro as crianças começaram a morrer de fome em dois outros bairros sitiados localizados ao sul da capital síria.

"O vírus é apolítico"

"É idiotice ou crime – dependendo de sua posição e responsabilidade – aceitar as mentiras sistemáticas do regime de Damasco", diz um diplomata ocidental em Gaziantep. "A ONU deve parar de fechar os olhos para o que está acontecendo à vista de todos. Caso contrário a organização não estará desempenhando o papel que lhe cabe".
Durante a semana passada, os especialistas da OMS e de outras organizações internacionais realizaram reuniões em Gaziantep com médicos e representantes locais das províncias para saber quantas pessoas vivem em cada região. A campanha de vacinação poderia começar dentro de alguns dias se a OMS liberasse a vacina. Mas a situação não parece promissora. O doutor Milaji tem uma visão cínica e sóbria sobre a questão: "Assad tem suas armas químicas. Nós temos a nossa arma biológica. Embora ela afete principalmente a nós mesmos em primeiro lugar, ela acabará por se espalhar por toda a região. E, quando se trata de contágio, o vírus é apolítico".

Tradutor: Cláudia Gonçalves

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